quinta-feira, 20 de março de 2014

Preferência Intertemporal

Shane Frederick, George Loewenstein e Ted O’Donoughe
Journal of Economic Literature. Volume XL. 2002.

Preferência intertemporal se refere à predileção por consumo presente em detrimento de consumo futuro e é um tema essencial em Finanças. O artigo Time Discounting and Time Preference: A Critical Review é uma revisão da literatura sobre o tema que é muito mais complexo do que se pensa (ou que eu pensava).


História
O primeiro a chamar a atenção ao assunto foi Adam Smith, que considerava importante a escolha intertemporal para o desenvolvimento da nação. Depois, o economista escocês John Rae examinaria as raízes sociológicas e psicológicas dessa variável. Rae via dois motivos para as pessoas economizar, que era o desejo de deixar um legado e o desejo de se auto restringir, dois fatores que agem na direção contrária sendo o limite da vida humana e a excitação do consumo presente. William e Hebert Jevons diriam que apenas importa a utilidade imediata e que a postergação do consumo ocorre porque gera utilidade antecipada. N.W. Senior diria que presente e futuro são equivalentes, mas que há a preferência por consumo presente pelo sofrimento da autonegação necessária para atrasar a gratificação. Eugene von Böhm-Bawerk adicionaria que as pessoas dão maior preferência para consumo presente pois sistematicamente subestimam os seus desejos futuros. Irving Fischer formalizaria a ideia primeiro proposta por Böhm-Bawerk de escolha em dois períodos de tempo e diria que a escolha intertemporal depende a taxa marginal de preferência temporal. Além dos motivos já citados, Fischer acrescentaria que a poupança vem da capacidade de estimar os desejos futuros (contrariamente ao déficit de Böhm-Bawerk) e ”moda”, o desejo de garantir o status que a riqueza traz.

Modelo de Desconto de Utilidade
Por fim, Paul Samuelson formalizaria a escolha intertemporal no Modelo de Desconto de Utilidade (DU) estendendo as ideias de Fischer. A vantagem do DU foi a sua extrema simplicidade, que nada mais é do que uma operação de desconto a valor presente utilizando não uma taxa de juros, mas uma taxa de desconto intertemporal (ρ), que condensaria todas as escolhas entre valores em dois tempos distintos. O próprio Samuelson tinha as suas reservas quanto ao modelo, mas ele logo recebeu boa aceitação e só depois viriam maiores testes empíricos com respeito à sua validade.

O Modelo DU possui uma série de características. A primeira é a integração, sendo assumido que a pessoa avalia novas alternativas integrando-as com as já existentes. A segunda é a independência da utilidade, o que importando sendo a soma do valor descontado ao longo do tempo, não importa o padrão que os fluxos ocorram ao longo do tempo. A independência do consumo estabelece que a utilidade do consumo em um período independe do consumo passado ou do consumo futuro. Por exemplo, uma pessoa ter ido a um restaurante italiano em um dia não afeta a utilidade de ir a um restaurante italiano no dia seguinte, nem a expectativa de ir amanhã afeta a decisão presente, o que, como veremos, não é realista, mas é o que o Modelo DU diz indiretamente.

O DU também considera que as preferências se mantêm constantes ao longo do tempo, o que também não é muito realista. Outra premissa é a de que as pessoas descontam todas as formas de consumo da mesma maneira, o que é uma ideia-chave, já que, de outra forma, não teríamos um único fator, e sim vários fatores (taxa de desconto intertemporal de bananas, taxa de desconto intertemporal de maças etc.). Também como consequência da taxa única, a pessoa deve preferir as mesmas coisas em períodos de tempo iguais, adiantando ou atrasando dois resultados da mesma maneira não devendo afetar o resultado, de forma que a taxa de desconto é consistente no tempo. O modelo ainda assume utilidade marginal decrescente e taxa positiva. Uma boa justificativa para a taxa positiva de desconto na formulação de Derek Parfit é que menos do que somos agora vai sobreviver ao futuro e por isso que nos importamos menos com o futuro, muito embora, empiricamente, não haja relação entre desconto monetário e estabilidade de personalidade no único teste feito a esse respeito.

“Anomalias” do DU
O modelo DU foi testado empiricamente em suas diversas implicações, com resultados anômalos sendo encontrados universalmente de forma que os autores questionam se são mesmo anômalos ou o modelo é que não é uma boa representação da realidade.

A “anomalia” mais bem estudada é o desconto hiperbólico, que indica que as pessoas descontam muito mais fortemente resultados próximos do que distantes. Ou seja, para diferentes alternativas, as mais próximas no tempo recebem maior taxa de desconto do que as mais longínquas, resultando no inesperado resultado de uma preferência intertemporal declinante com o tempo. Além do mais, essas preferências não são constantes, de forma que alguém pode preferir R$ 110 daqui a 31 dias a R$ 100 daqui a 30 dias, mas não R$ 110 amanhã a R$ 100 hoje. Há ainda o desconto subaditivo, quando a taxa de desconto de um período completo é menor do que a composição das taxas de desconto em subperíodos, o que não é previsto pelo desconto hiperbólico.

Outras “anomalias” do DU são o efeito sinal (pessoas descontam mais pesadamente ganhos do que perdas), valores menores serem mais descontados, diferenças nas preferências entre atrasar ou adiar um resultado que deveriam ser o mesmo nos dois casos, as pessoas preferirem sequências crescentes (mesmo que o valor presente de uma sequência crescente seja maior), as pessoas desejarem espalhar o consumo ao longo do tempo e o fato de uma escolha afetar uma decisão futura, entre outros resultados anômalos ao DU.

E a questão é: seriam mesmo anomalias? São erros que as pessoas cometem sem perceber ou as pessoas agem dessa maneira, mesmo após ter mais tempo de refletir? O que os autores argumentam é que essas “anomalias” não violam nenhuma ideia sobre como as pessoas deveriam agir e não podem ser considerados como erros apenas por não se enquadraram ao DU.

Modelos Alternativos
O artigo então discute alguns modelos alternativos, algumas relaxando algumas das premissas do DU, outras se desviando dele por completo. O primeiro conjunto de modelos trata de desconto hiperbólico, sendo criados modelos ad hoc para tratar de uma situação específica que pode não ter a ver diretamente com uma alternativa ao DU, como, por exemplo, análise da contratação de um principal ou consumo de drogas. Uma ideia interessante que surgiu nessa discussão é a possibilidade de evitar excesso de consumo com a aquisição de ativos ilíquidos, como imóveis.

Na questão da consistência temporal, alguns modelos ou sugerem total ingenuidade, acreditando que suas preferências não mudam, ou sofisticação, prevendo corretamente como as suas preferências mudam. O desafio que esses modelos se propõem é identificar o nível desses dois comportamentos e quais são as suas consequências.

Outros modelos acrescentam argumentos à função do modelo DU. Modelos de Formação de Hábitos postulam que o consumo passado afeta as preferências por consumo em períodos futuros. Modelos de Ponto de Referência, semelhantes aos Modelos de Formação de Hábitos, partem da Teoria da Perspectiva e procuram explicar várias “anomalias” como o efeito sinal e o efeito magnitude. Modelos de Utilidade Antecipada dizem que as pessoas extraem utilidade da expectativa de consumo futuro, e isso explicaria o efeito sinal e outras “anomalias”, como o desconto de diferentes bens a taxas diferentes. Modelos de Influências Viscerais colocariam em foco fome, desejos, dor e outros fatores biológicos nos modelos de escolha intertemporal, o que pode explicar a variação nas escolhas intertemporais inconsistentes com o modelo DU.

Outros modelos se desviam mais radicalmente do DU. Modelos de Viés de Projeção indicam que as pessoas estimam errado e subestimam as mudanças em suas preferências. Modelos de Contabilidade Mental dizem que as pessoas contabilizam de maneira diferente diferentes tipos de gastos, como compras pequenas e grandes. Nos Modelos de Escalonamento de Escolhas, nota-se que as pessoas tomam várias decisões sem se atentarem para as decisões passadas e as decisões são afetadas pela ordem que as decisões são apresentadas. Essa perspectiva também ajuda a entender porque as pessoas preferem sequências crescentes. Modelos de Múltiplos Egos postulam que decisões inconsistentes são reflexos de conflitos entre diferentes egos das pessoas. Porém, esses modelos são pouco formalizados e geram poucas hipóteses testáveis. Modelos de Utilidade de Tentação dizem que as pessoas experimentam desutilidade quando abrem mão de uma opção agora. No fim, nenhum modelo é muito convincente (nem o DU) e o que está em curso é a interação simultânea entre vários dos fatores apontados como “anomalias” e entre as várias alterações sugeridas pelos diferentes modelos.

Medindo o Desconto Temporal
Algumas tentativas foram feitas para tentar calcular a taxa de desconto temporal, tentativas não exatamente bem-sucedidas pelas (várias) falhas do modelo DU. Alguns tentam observar um comportamento real e tentar calcular a taxa de desconto (“testes de campo”), como, por exemplo, examinar a decisão de comprar um aparelho de ar-condicionado mais barato, mas com menor eficiência energética, ou um mais caro e mais eficiente. Testes de campo não precisam se perguntar se as pessoas agem da maneira prevista, já que são baseados em comportamentos reais, mas podem ser mais difíceis de controlar. Outros tentam estimar a taxa através de experimentos, como perguntar qual seria o valor necessário para abrir mão de uma determinada quantia futura. Porém, analisando vários estudos, nota-se uma enorme variabilidade nos resultados e nenhuma convergência conforme o número de estudos aumenta.

O problema das medições do desconto temporal é que há uma série de fatores embutidos que se confundem com a preferência temporal, mas que não tem a ver com isso. Esses fatores incluem a alocação do consumo (os modelos presumem que aquilo que é recebido é consumido imediatamente, o que pode não ser o caso), ignorância sobre o mercado de capitais (que, existindo e funcionando, deveriam fazer a taxa de desconto convergir para as taxas de juros), o formato da curva de utilidade (que talvez seja côncava, e não linear), incerteza (será que as taxas de desconto temporais não embutem um prêmio por risco?), inflação (outro fator geralmente ignorado) e mudança de utilidade (daqui a cinco anos, por exemplo, o dinheiro pode ser visto como mais importante). Todos esses fatores acabam confundindo o entendimento da taxa de desconto e deveriam ser isolados.

Desempacotando
E a discussão vai além: será que a preferência temporal é um traço de personalidade? Para tal, deveria: 1) ser estável ao longo do tempo; 2) prever o comportamento em uma ampla variedade de questões; 3) ter suas várias formas de medição coerentes umas com as outras. E a preferência temporal falha nos três quesitos.

Por isso, os autores sugerem que a taxa de desconto deve ser desempacotada em motivos mais fundamentais e melhor mensuráveis, como impulsividade, compulsividade e inibição, essas três dimensões podendo ser úteis para analisar os problemas examinados atualmente por modelos de preferência temporal.


Em suma, o modelo DU não tem base empírica, apesar de sua simplicidade e por até fazer sentido, e a verdade é que não temos nenhuma alternativa melhor e há problemas em todas as abordagens já tentadas para analisar as preferências temporais. Ou seja, o assunto ainda é um completo mistério para os economistas e talvez a melhor solução seja abandonar a tentativa de um modelo unificador e adaptar o modelo a cada situação específica que reflita a multiplicidade de motivos inerentes à decisão em análise.

2 comentários:

  1. O estabelecimento de um modelo unificado para o cálculo da taxa de desconto é virtualmente impossível diante da enormidade de fatores que influem nas preferências do consumidor e nas conveniências/necessidades do empresário. Uma "taxa infalível" de desconto suporia a superação dessas dificuldades e implicaria num paradoxo: a exclusão total do risco inerente a qualquer operação econômica. Melhor um bom método impreciso do que um infalível e impossível.

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  2. Excelente texto, resume muito bem o estado atual da arte (ou o estado atual de nossa mais completa ignorância) quando o assunto é tomada de decisões de consumo.

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