Shane Frederick, George Loewenstein e Ted
O’Donoughe
Journal of Economic Literature. Volume XL. 2002.
Preferência intertemporal se refere à predileção por consumo presente em detrimento de consumo futuro e é um tema essencial em Finanças. O artigo Time Discounting and Time Preference: A Critical Review é uma revisão da literatura sobre o tema que é muito mais complexo do que se pensa (ou que eu pensava).
História
O
primeiro a chamar a atenção ao assunto foi Adam Smith, que considerava
importante a escolha intertemporal para o desenvolvimento da nação. Depois, o
economista escocês John Rae examinaria as raízes sociológicas e psicológicas
dessa variável. Rae via dois motivos para as pessoas economizar, que era o
desejo de deixar um legado e o desejo de se auto restringir, dois fatores que
agem na direção contrária sendo o limite da vida humana e a excitação do
consumo presente. William e Hebert Jevons diriam que apenas importa a utilidade
imediata e que a postergação do consumo ocorre porque gera utilidade
antecipada. N.W. Senior diria que presente e futuro são equivalentes, mas que
há a preferência por consumo presente pelo sofrimento da autonegação necessária
para atrasar a gratificação. Eugene von Böhm-Bawerk adicionaria que as pessoas
dão maior preferência para consumo presente pois sistematicamente subestimam os
seus desejos futuros. Irving Fischer formalizaria a ideia primeiro proposta por
Böhm-Bawerk de escolha em dois períodos de tempo e diria que a escolha
intertemporal depende a taxa marginal de preferência temporal. Além dos motivos
já citados, Fischer acrescentaria que a poupança vem da capacidade de estimar
os desejos futuros (contrariamente ao déficit de Böhm-Bawerk) e ”moda”, o
desejo de garantir o status que a riqueza traz.
Modelo de Desconto de Utilidade
Por
fim, Paul Samuelson formalizaria a escolha intertemporal no Modelo de Desconto de Utilidade (DU)
estendendo as ideias de Fischer. A vantagem do DU foi a sua extrema
simplicidade, que nada mais é do que uma operação de desconto a valor presente
utilizando não uma taxa de juros, mas uma taxa de desconto intertemporal (ρ), que condensaria todas as escolhas entre valores em dois tempos
distintos. O próprio Samuelson tinha as suas reservas quanto ao modelo, mas ele
logo recebeu boa aceitação e só depois viriam maiores testes empíricos com
respeito à sua validade.
O
Modelo DU possui uma série de características. A primeira é a integração, sendo assumido que a pessoa
avalia novas alternativas integrando-as com as já existentes. A segunda é a independência da utilidade, o que
importando sendo a soma do valor descontado ao longo do tempo, não importa o
padrão que os fluxos ocorram ao longo do tempo. A independência do consumo estabelece que a utilidade do consumo em
um período independe do consumo passado ou do consumo futuro. Por exemplo, uma
pessoa ter ido a um restaurante italiano em um dia não afeta a utilidade de ir
a um restaurante italiano no dia seguinte, nem a expectativa de ir amanhã afeta
a decisão presente, o que, como veremos, não é realista, mas é o que o Modelo
DU diz indiretamente.
O
DU também considera que as preferências
se mantêm constantes ao longo do tempo, o que também não é muito realista.
Outra premissa é a de que as pessoas descontam
todas as formas de consumo da mesma maneira, o que é uma ideia-chave, já
que, de outra forma, não teríamos um único fator, e sim vários fatores (taxa de
desconto intertemporal de bananas, taxa de desconto intertemporal de maças
etc.). Também como consequência da taxa única, a pessoa deve preferir as mesmas coisas em períodos de tempo iguais,
adiantando ou atrasando dois resultados da mesma maneira não devendo afetar o
resultado, de forma que a taxa de desconto é consistente no tempo. O modelo
ainda assume utilidade marginal decrescente e taxa positiva. Uma boa
justificativa para a taxa positiva de desconto na formulação de Derek Parfit é
que menos do que somos agora vai sobreviver ao futuro e por isso que nos
importamos menos com o futuro, muito embora, empiricamente, não haja relação
entre desconto monetário e estabilidade de personalidade no único teste feito a
esse respeito.
“Anomalias” do DU
O
modelo DU foi testado empiricamente em suas diversas implicações, com
resultados anômalos sendo encontrados universalmente de forma que os autores
questionam se são mesmo anômalos ou o modelo é que não é uma boa representação
da realidade.
A
“anomalia” mais bem estudada é o desconto
hiperbólico, que indica que as pessoas descontam muito mais fortemente
resultados próximos do que distantes. Ou seja, para diferentes alternativas, as
mais próximas no tempo recebem maior taxa de desconto do que as mais
longínquas, resultando no inesperado resultado de uma preferência intertemporal
declinante com o tempo. Além do mais, essas preferências não são constantes, de
forma que alguém pode preferir R$ 110 daqui a 31 dias a R$ 100 daqui a 30 dias,
mas não R$ 110 amanhã a R$ 100 hoje. Há ainda o desconto subaditivo, quando a taxa de desconto de um período
completo é menor do que a composição das taxas de desconto em subperíodos, o
que não é previsto pelo desconto hiperbólico.
Outras
“anomalias” do DU são o efeito sinal
(pessoas descontam mais pesadamente ganhos do que perdas), valores menores serem mais descontados, diferenças nas preferências
entre atrasar ou adiar um resultado
que deveriam ser o mesmo nos dois casos, as pessoas preferirem sequências crescentes (mesmo que o
valor presente de uma sequência crescente seja maior), as pessoas desejarem espalhar o consumo ao longo do tempo e o
fato de uma escolha afetar uma decisão futura, entre outros resultados anômalos
ao DU.
E
a questão é: seriam mesmo anomalias? São erros que as pessoas cometem sem
perceber ou as pessoas agem dessa maneira, mesmo após ter mais tempo de
refletir? O que os autores argumentam é que essas “anomalias” não violam
nenhuma ideia sobre como as pessoas deveriam agir e não podem ser considerados
como erros apenas por não se enquadraram ao DU.
Modelos Alternativos
O
artigo então discute alguns modelos alternativos, algumas relaxando algumas das
premissas do DU, outras se desviando dele por completo. O primeiro conjunto de
modelos trata de desconto hiperbólico,
sendo criados modelos ad hoc para
tratar de uma situação específica que pode não ter a ver diretamente com uma
alternativa ao DU, como, por exemplo, análise da contratação de um principal ou
consumo de drogas. Uma ideia interessante que surgiu nessa discussão é a
possibilidade de evitar excesso de consumo com a aquisição de ativos ilíquidos,
como imóveis.
Na
questão da consistência temporal,
alguns modelos ou sugerem total ingenuidade, acreditando que suas preferências
não mudam, ou sofisticação, prevendo corretamente como as suas preferências
mudam. O desafio que esses modelos se propõem é identificar o nível desses dois
comportamentos e quais são as suas consequências.
Outros
modelos acrescentam argumentos à função do modelo DU. Modelos de Formação de Hábitos postulam que o consumo passado afeta
as preferências por consumo em períodos futuros. Modelos de Ponto de Referência, semelhantes aos Modelos de Formação
de Hábitos, partem da Teoria da Perspectiva e procuram explicar várias
“anomalias” como o efeito sinal e o efeito magnitude. Modelos de Utilidade Antecipada dizem que as pessoas extraem
utilidade da expectativa de consumo futuro, e isso explicaria o efeito sinal e
outras “anomalias”, como o desconto de diferentes bens a taxas diferentes. Modelos de Influências Viscerais
colocariam em foco fome, desejos, dor e outros fatores biológicos nos modelos
de escolha intertemporal, o que pode explicar a variação nas escolhas
intertemporais inconsistentes com o modelo DU.
Outros
modelos se desviam mais radicalmente do DU. Modelos de Viés de Projeção indicam que as pessoas estimam errado e
subestimam as mudanças em suas preferências. Modelos de Contabilidade Mental dizem que as pessoas contabilizam
de maneira diferente diferentes tipos de gastos, como compras pequenas e
grandes. Nos Modelos de Escalonamento de
Escolhas, nota-se que as pessoas
tomam várias decisões sem se atentarem para as decisões passadas e as decisões
são afetadas pela ordem que as decisões são apresentadas. Essa perspectiva
também ajuda a entender porque as pessoas preferem sequências crescentes. Modelos de Múltiplos Egos postulam que
decisões inconsistentes são reflexos de conflitos entre diferentes egos das
pessoas. Porém, esses modelos são pouco formalizados e geram poucas hipóteses
testáveis. Modelos de Utilidade de
Tentação dizem que as pessoas experimentam desutilidade quando abrem mão de
uma opção agora. No fim, nenhum modelo é muito convincente (nem o DU) e o que
está em curso é a interação simultânea entre vários dos fatores apontados como
“anomalias” e entre as várias alterações sugeridas pelos diferentes modelos.
Medindo o Desconto Temporal
Algumas
tentativas foram feitas para tentar calcular a taxa de desconto temporal,
tentativas não exatamente bem-sucedidas pelas (várias) falhas do modelo DU.
Alguns tentam observar um comportamento real e tentar calcular a taxa de
desconto (“testes de campo”), como,
por exemplo, examinar a decisão de comprar um aparelho de ar-condicionado mais
barato, mas com menor eficiência energética, ou um mais caro e mais eficiente. Testes
de campo não precisam se perguntar se as pessoas agem da maneira prevista, já
que são baseados em comportamentos reais, mas podem ser mais difíceis de
controlar. Outros tentam estimar a taxa através de experimentos, como perguntar qual seria o valor necessário para
abrir mão de uma determinada quantia futura. Porém, analisando vários estudos,
nota-se uma enorme variabilidade nos resultados e nenhuma convergência conforme
o número de estudos aumenta.
O
problema das medições do desconto temporal é que há uma série de fatores
embutidos que se confundem com a preferência temporal, mas que não tem a ver
com isso. Esses fatores incluem a alocação
do consumo (os modelos presumem que aquilo que é recebido é consumido
imediatamente, o que pode não ser o caso), ignorância
sobre o mercado de capitais (que, existindo e funcionando, deveriam fazer a
taxa de desconto convergir para as taxas de juros), o formato da curva de utilidade (que talvez seja côncava, e não
linear), incerteza (será que as
taxas de desconto temporais não embutem um prêmio por risco?), inflação (outro fator geralmente
ignorado) e mudança de utilidade (daqui
a cinco anos, por exemplo, o dinheiro pode ser visto como mais importante).
Todos esses fatores acabam confundindo o entendimento da taxa de desconto e
deveriam ser isolados.
Desempacotando
E
a discussão vai além: será que a preferência temporal é um traço de
personalidade? Para tal, deveria: 1) ser estável ao longo do tempo; 2) prever o
comportamento em uma ampla variedade de questões; 3) ter suas várias formas de
medição coerentes umas com as outras. E a preferência temporal falha nos três
quesitos.
Por
isso, os autores sugerem que a taxa de desconto deve ser desempacotada em
motivos mais fundamentais e melhor mensuráveis, como impulsividade,
compulsividade e inibição, essas três dimensões podendo ser úteis para analisar
os problemas examinados atualmente por modelos de preferência temporal.
Em
suma, o modelo DU não tem base empírica, apesar de sua simplicidade e por até fazer
sentido, e a verdade é que não temos nenhuma alternativa melhor e há problemas
em todas as abordagens já tentadas para analisar as preferências temporais. Ou
seja, o assunto ainda é um completo mistério para os economistas e talvez a
melhor solução seja abandonar a tentativa de um modelo unificador e adaptar o
modelo a cada situação específica que reflita a multiplicidade de motivos
inerentes à decisão em análise.
O estabelecimento de um modelo unificado para o cálculo da taxa de desconto é virtualmente impossível diante da enormidade de fatores que influem nas preferências do consumidor e nas conveniências/necessidades do empresário. Uma "taxa infalível" de desconto suporia a superação dessas dificuldades e implicaria num paradoxo: a exclusão total do risco inerente a qualquer operação econômica. Melhor um bom método impreciso do que um infalível e impossível.
ResponderExcluirExcelente texto, resume muito bem o estado atual da arte (ou o estado atual de nossa mais completa ignorância) quando o assunto é tomada de decisões de consumo.
ResponderExcluir