domingo, 19 de setembro de 2010

Hoje é o que importa

Um erro comum de diversos textos que misturam matemática financeira e finanças pessoais é utilizar valor futuro ao invés de valor presente para argumentar sobre os benefícios ou malefícios de uma determinada prática. Essa planilha contém os cálculos utilizados ao longo do texto (exceto a última seção).

Um texto mostrava que se ao invés de realizar a troca anual de um celular de R$ 1.000,00 a pessoa trocasse a cada dois anos e investisse o dinheiro economizado, teria R$ 38 mil, considerando uma taxa de 6% a.a.. Trocando a cada três anos, teria R$ 51 mil. Outro mostrava que um casal que deixe de gastar R$ 125 por mês em cigarro e aplicasse a uma taxa de 0,5% ao mês teria R$ 87 mil em vinte e cinco anos. Como esse raciocínio não se aplica apenas para coisa ruim, se uma pessoa aplicar R$ 180 por mês (apenas R$ 6 por dia!) ganhando 4% a.a. de taxa real teria R$ 123 mil em 30 anos, muito mais do que os R$ 64.800 que deixou de gastar.

O erro comum dos três artigos (e infinitos outros que devem estar espalhados pela internet ou na mídia impressa) é utilizar valor futuro ao invés de valor presente. Utilizar valores futuros sempre produz resultados volumosos aos olhos, para causar mais medo (como nos dois primeiros casos) ou mais desejo (como no último). Se você quiser convencer alguém de que algo é ruim, calcule o valor futuro desse algo e mostre a montanha de dinheiro que a pessoa gastou, de forma a dissuadi-la de tal atitude. Se você quiser convencer alguém dos benefícios de algo, pode também mostrar o valor futuro e mostrar como o futuro será belo e sublime.

O possível erro cognitivo que pode tornar o uso do valor futuro tão sedutor é comparar valores em datas diferentes como se fossem valores presentes. Compara-se R$ 51 mil, e R$ 87 mil R$ 123 mil em trinta, vinte e cinco e trinta anos, respectivamente, com R$ 51 mil, R$ 87 mil e R$ 123 mil hoje. É possível ajustar esse erro tentando imaginar o que seriam esses valores naquelas datas (daqui a 25 ou 30 anos). O que significaria para mim R$ 87 mil daqui a vinte e cinco anos? O texto argumenta que daria para comprar um apartamento. Duvido que com esse valor seja possível comprar hoje um bom apartamento por esse valor (o que dizer daqui a trinta anos!), mas imagine que fosse possível. O fato é que deixar de fumar não significa poder comprar um apartamento hoje, e sim daqui a vinte e cinco anos. E o que significa para mim um apartamento daqui a vinte e cinco anos? Difícil dizer.

Diante do hercúleo esforço para imaginar o que determinado valor significa em uma data tão longínqua, uma solução muito mais prática (menos intuitiva, talvez) é trazer a valor presente essas séries de pagamentos. A troca de celulares anual comparada com a troca a cada três anos representa uma perda de R$ 8.906,76, o cigarro R$ 19.400,86 e a aplicação R$ 38.030,71. E a interpretação é bem mais simples: quem troca de celular todos os anos para estar sempre na vanguarda do celular e fará isso nos próximos 30 anos é como se abrisse mão de R$ 8,9 mil reais hoje para fazer isso. Trocando celular todos os anos, abre mão de um valor presente de R$ 13.764,83 e poderia abrir mão de apenas R$ 4.858,07, tendo como perda essa diferença. Um enorme problema que deve ter transparecido ao leitor atento é que essa análise sugere que a pessoa jogue fora todos os anos um celular de mil reais, o que é uma premissa forte, para dizer o mínimo. Fazendo esse ajuste, supondo que a pessoa consiga vender o celular por metade do preço pago, os valores caem pela metade.

O casal que tenha planos de gastar R$ 125 por mês em cigarros pelos próximos 30 anos estará abrindo mão hoje de R$ 19.400,86. E quem desejar ter R$ 123 mil daqui a trinta anos aplicando a 0,4% a.m. de taxa real é como se abrisse mão de R$ 38.030,71 hoje.

Uma interpretação para os valores presentes nos dois primeiros casos é a quantia que a pessoa deveria ter hoje para poder consumir o que deseja consumir, receber juros do valor ainda não gasto, e ter zero ao final do período. O valor presente da aplicação é o quanto a pessoa deveria gastar em uma parcela única hoje ao invés de parcelas mensais para se chegar ao mesmo valor futuro.

Outra questão é que esses artigos parecem pretender saber o que é melhor para o leitor, e já fazem os juízos que deveriam ser feitos exclusivamente pelos leitores. Quem pode dizer para outra pessoa que é errado abrir mão de R$ 8,9 mil reais para estar na vanguarda tecnológica do celular para os próximos 30 anos? Quem pode dizer que é ruim passar os próximos 25 anos fumando em troca de R$ 19 mil hoje (sem falar nos custos de saúde que poderiam ser levados em conta)? E quem pode dizer que a pessoa deve deixar de ir à padaria todos os dias e gastar R$ 6 e “ganhar” um valor presente de R$ 38 mil hoje? Só quem se envolve com esses e outros dilemas pode responder sobre o uso do próprio dinheiro.

A conclusão é o título deste texto: o que importa é hoje, ou seja, o que importa é o valor presente, não o valor futuro.

OBS: Dois problemas utilizaram taxa nominal e um taxa real. Qual é a melhor abordagem? Ver um próximo texto sobre o assunto. Adianto: os três problemas têm falhas (o da aplicação tem falhas de formulação, mas o resultado não se altera se alterarmos o enunciado do exemplo) e, se feito do jeito certo, utilizar taxa nominal ou real deve ter o mesmo resultado.

Diferentes taxas de juros
Um problema semelhante foi mostrado algures utilizando um valor presente (R$ 40 mil) que seria economizado se a pessoa deixasse de tomar uma certa decisão de consumo (trocar de carro, se não me falha a memória). Se a pessoa aplicasse esse dinheiro, geraria diversos valores futuros, dependendo da taxa de juros empregada. Em trinta anos, esse valor poderia ser de R$ 172 mil (taxa de 5%) ou R$ 9 milhões. É tautológico dizer que o valor presente é o mesmo para qualquer dos cenários. E, como argumentado aqui, o que importa é o valor presente. Claro que a pessoa estaria mais disposta a deixar de gastar R$ 40 mil hoje para receber R$ 9 milhões aqui a trinta anos do que se a hipótese fosse de receber R$ 172 mil em trinta anos. Mas isso não tem tanto a ver com os valores futuros, e mais com a decisão de poupar com diferentes taxas de juros. Estamos mais inclinados a poupar quando as taxas estão mais altas do que quando estão mais baixas; os valores futuros mais elevados na primeira hipótese demonstram isso.

Porém, a exposição não era destinada a examinar a decisão de poupança com diferentes taxas, e sim convencer alguém de que é irracional gastar o dinheiro na troca de carro e que o melhor é poupar. Trocar de carro, nesse exemplo, envolveria abrir mão de R$ 40 mil: quem acha que vale a pena considerando as suas próprias características e as taxas de juros vigentes, troca; quem não acha, não troca.

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