Segundo a lei, pagamento com cartão de crédito é considerado pagamento à vista. Pelo menos, nas leis aprovadas pelos políticos do Brasil e em outros países. Na lei econômica, pagamento com cartão de crédito é o que é, ou seja, pagamento a prazo.
Concisamente, Matemática Financeira é o estudo da relação de conjunta de dinheiro e tempo, ou seja, estuda o valor do dinheiro no tempo. Dois montantes em datas diferentes não são igualmente desejáveis, não possuem o mesmo valor presente. O fluxo de mercadoria com pagamento à vista e no cartão é o mesmo, ou seja, na data 0 (podendo ser diferente caso haja a necessidade de frete). Para o consumidor, o fluxo financeiro no primeiro caso é na data 0 e no segundo é superior a dez dias após a data 0, podendo ser bem superior a isso caso a fatura vire em quarenta dias ou o pagamento seja parcelado. Para o comerciante, os fluxos descritos são os mesmos, exceto pelo recebimento das compras no cartão, que depende da negociação com as empresas credenciadoras (com a Cielo e a Redecard, por exemplo). O que vale para dez séculos vale para dez dias, ou seja, os valores presentes de dois fluxos de caixa em datas diferentes são diferentes.
Diferenciação entre o preço à vista e no cartão apenas refletiria essa lei econômica que nenhum burocrata pode revogar. Porém, de acordo com interpretações do Código de Defesa do Consumidor, artigo 39, inciso X, reforçada pela nota nº 103 do DNPC, tal prática é considerada abusiva. Dois projetos de lei (213/07 e 492/09) foram enviados para mudar essa situação, mas nenhum dos dois foi aprovado por considerar que ferem os direitos do consumidor.
A justificativa para a diferenciação de preços é que o único efeito da proibição é aumentar o preço para quem paga à vista. O lojista incorre em diversos custos como o aluguel das máquinas e taxas de desconto cobradas pelas credenciadoras e, como todo custo, repassa parcialmente esse custo para o consumidor no preço. Quem paga à vista cobre o custo das operações com cartão de crédito dos outros consumidores. Ocorre o subsídio cruzado com os que pagam à vista pagando mais caro para beneficiar os que pagam a prazo (com cartão).
As argumentações contrárias são semelhantes entre si, dizendo que os lojistas se beneficiam da disponibilização dos cartões, facilitando o pagamento por parte dos consumidores e assim possibilitando mais transações. Diferenciar preços por conta dos custos dos cartões seria transferir “custos que não podem ser repassados” ou “transferir o risco” para o consumidor. Outra argumentação é que os empresários ganham dinheiro com a disponibilização do meio de pagamento e, portanto, não poderia cobrar por isso. Seria como se beneficiar sem pagar pelos custos. Nenhum desses argumentos trata do simples fato de que os custos já são repassados; diferenciar preços apenas faria com que os consumidores que geram esses custos paguem por eles, isentando os demais.
Alguém poderia dizer que o efeito do fim da proibição seria aumentar o preço do pagamento com cartão e manter inalterado o preço à vista. Se o objetivo da empresa for aumentar seu lucro, não vejo porque tenha que ser assim. Por algum motivo, as pessoas acreditam que as empresas aumentam seus lucros aumentando o preço. Em qualquer aula de Introdução à Economia se aprende que há uma relação inversa entre preço e quantidade demandada (e positiva entre preço e quantidade ofertada). Aumentar preço reduz a quantidade demandada/vendida, de forma que a empresa ganha com o aumento no preço para os clientes remanescentes, mas perde vendas. Se deseja maximizar a receita, estabelece um preço tal que um pequeno aumento ou uma pequena redução ou aumento não afetaria a receita (Receita Marginal = 0). Se deseja maximizar o lucro, a empresa deve estabelecer um preço de forma a igualar receita marginal com custo marginal.
Vigorando a proibição, a empresa que maximizar lucro acaba dividindo os custos entre os clientes que pagam em dinheiro e no cartão. Sem a proibição, o custo com pagamento à vista cai (o custo do pagamento com cartão não é mais incorporado ao preço à vista) e a empresa poderia cobrar menos e vender mais (a igualdade entre custo marginal e receita marginal se dá com um preço menor). Já para o cartão, o custo que era repartido com os consumidores que pagavam à vista passaria a ser exclusivo dos que pagam com o cartão e o preço seria maior do que durante a proibição. O que seria de se esperar é uma queda no preço à vista e aumento no pagamento a prazo. Se mantiver o preço à vista e aumentar o preço a prazo no cartão poderá fazê-lo em seu prejuízo e pode perder mercado para concorrentes que reduzam os preços à vista.
Esse é o argumento sobre o porquê de uma empresa poder querer diferenciar preços. Talvez não queira fazer isso porque os clientes podem entender que não houve um desconto para pagamento à vista, e sim aumento para pagamento no cartão (supondo que exista a situação dos dois parágrafos acima) ou porque diferenciar preços tornaria a atividade mais complexa, sendo mais fácil gerenciar apenas um preço. Hoje mesmo algumas empresas se dispõem a aceitar pagamentos parcelados em mais de uma vez ”sem juros”, apesar de claramente não haver nada no universo sem juros.
Uma situação diferente é a empresa anunciar um preço e, na hora do pagamento, notando ser por meio do cartão, propor um acréscimo. O problema nessa prática não está em diferenciar preços, mas em não estabelecer as regras com antecedência. O projeto de lei original (213/07) tratava da possibilidade de diferenciação “desde que o consumidor seja inequívoca e ostensivamente informado pelo fornecedor a esse respeito”. Não informar que há diferenciação não é problema da existência da diferenciação. Usar essa situação para argumentar contra a diferenciação é o mesmo que argumentar contra a possibilidade da loja não aceitar cartão de crédito, já que as empresas poderiam não informar isso ao consumidor (e muitas não informam).
A situação que eu julgo mais eficiente (ou seja, se fosse eu o lojista, eu adotaria) seria manter os preços como estão e oferecer um desconto para pagamento genuinamente à vista. Isso poderia ser expandido oferecendo descontos diferentes para cada modalidade, com pagamento em dinheiro tendo um desconto maior, em cartão de débito um desconto menor e a prazo com cartão de crédito sem desconto. Informalmente, pequenos estabelecimentos já oferecem descontos para pagamento à vista e formalmente há esses descontos camuflados como promoções. Não sei qual é a melhor solução, se é essa que propus, ou o repasse total da taxa de desconto, manter como está ou outra que sequer consigo imaginar. Os planejadores centrais, que mantêm a proibição da diferenciação de preços, também não sabem qual a melhor solução para coisa alguma. O ideal, na minha visão, é derrubar essa proibição e deixar que as pessoas (consumidores, lojistas, credenciadores, emissores etc.) encontrem a solução que considerem melhor.
Outro impedimento à diferenciação de preços é que consta no contrato entre varejistas e as credenciadoras a proibição do uso de preços diferentes. É natural que essa cláusula contratual exista: as credenciadoras, administradoras, emissoras e bandeiras de cartão de crédito não querem a competição de seu produto (pagamento com cartão de crédito) com o pagamento à vista. Se está no contrato, que não haja diferenciação. A questão é o que fazer quando não há essa cláusula.
Pagamento à vista se efetua na data 0. Pagamento à prazo, incluindo cartão de crédito, se efetua em outra data senão a data 0. Logo, pagamento à prazo não é pagamento à vista. Quem discorda, quem acha que pagamento com cartão é pagamento à vista porque não há parcelamento (e há quem diga isso) acha que pagamento em uma data futura (por meio de cartão de crédito, por exemplo) é igual ao pagamento feito no presente, o que é confundir futuro com presente.
Vendida como defesa do consumidor, essa ideia acaba dando poder de mercado às credenciadoras, prejudica consumidores que preferem ou só podem pagar à vista e prejudica pequenos estabelecimentos favorecendo os grandes, que podem melhor arcar com esses custos e ainda negociar com os credenciadores taxas de desconto e aluguel de máquinas menores. Tudo em sua proteção.
No blog Brasil, Economia e Governo há um texto tratando dessa questão. Há argumentos em comum entre esse texto e o meu, mas o autor enfatiza a análise econômica da situação (incluindo uma breve descrição de como funciona a indústria de cartões de crédito) e a minha ênfase foi na matemática financeira da questão e no absurdo que alguém considere pagamento no cartão como pagamento á vista.
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