Diferentes setores de atuação possuem suas particularidades que tornam mais fácil ou mais difícil de realizar uma avaliação do valor das empresas. Nesse sentido, construção civil é um setor especialmente desafiante.
Começa que incorporadoras possuem uma forma
diferente de reconhecer receitas. Normalmente, as vendas se tornam receitas
assim que são realizadas seguindo o regime de competência. Para empresas de
construção civil, as receitas são apropriadas conforme a evolução financeira da
obra seguindo o método Percentage of Completion (POC), de forma que a receita
de um trimestre é uma combinação da apropriação de vendas realizadas em
trimestres anteriores por conta do andamento das obras e o reconhecimento da
receita das vendas realizadas do trimestre proporcional à porcentagem de
conclusão.
Esse ponto costuma ser apontado como a grande
peculiaridade do setor e, apesar de ser um conceito diferente do que vemos
geralmente, não é tão difícil de assimilar. Projetar, por outro lado, já é uma
dificuldade maior e entramos agora no ponto mais complexo desse tipo de
empresa: o caráter multiperíodo de diversos de seus números
econômico-financeiros. Para continuar o ponto anterior, o reconhecimento das
receitas de vendas realizadas em um trimestre se prolonga por diversos períodos
(exceto “estoque pronto” de imóveis já entregues) e de uma forma irregular.
Para projetar a evolução da receita, é necessário estimar como será a evolução
das obras. E para acrescentar mais uma dificuldade, as incorporadoras são um
agregado de diferentes projetos, cada um com suas próprias características.
Toda empresa pode ser entendida como um agregado de projetos, mas esse caráter é
mais pronunciado nesse setor, na medida em que cada imóvel (e são vários, mesmo
em incorporadoras pequenas) tem o seu próprio prazo de entrega, ritmo de obras,
ritmo de vendas, margem bruta etc. O ideal ao se avaliar uma empresa é
desagregar para projetar os números da empresa de uma maneira mais precisa e
realista, mas infelizmente não é possível desagregar muito os números da
empresa. Com isso, é inescapável ter que adotar um número médio para as várias
métricas da empresa, que, no caso do reconhecimento de receitas, é o ritmo das
obras, mesmo que haja grande variabilidade nessas métricas. Para
incorporadoras, me parece que essas médias possuem maior variância do que
médias empregadas ao se analisar outros tipos de empresas.
Outra dificuldade do caráter multiperíodo é o
“Contas a Receber”. Geralmente, o capital
de giro das empresas em um trimestre possui uma correlação forte com a
receita líquida do trimestre, que é uma boa métrica da atividade da empresa.
Para construção civil, essa relação se quebra na medida em que os valores a
receber registrados não possuem relação com a atividade do trimestre vigente, e
sim com os trimestres anteriores se estendendo a anos anteriores. Para piorar,
as regras contábeis estabelecem que apenas os valores a receber das vendas já
apropriadas como receita é que podem ser contabilizados, o restante do valor
das vendas ficando fora do balanço. As empresas geralmente divulgam esses
valores “off-balance”, seja em Nota
Explicativa (NE), seja no release de
resultado, mas esse é mais um fator que dificulta a análise.
O custo, naturalmente, segue uma lógica semelhante.
O custo informado na Demonstração de Resultados do Exercício (DRE) é um
agregado de três componentes: o custo dos imóveis prontos vendidos, a parcela
do custo já incorrido dos imóveis vendidos no trimestre e o custo incorrido das
unidades já vendidas anteriormente. Infelizmente, as empresas não diferenciam
essas componentes nos releases de
resultado e muito menos nas NEs. Porém, o que é necessário estimar para
projetar os custos já foi feito ao se analisar a receita. Com a receita e com o
custo, é possível calcular a margem bruta, mas, aqui, novamente temos
complicações. Além da margem dos produtos variar bastante no tempo por
diferentes fatores (situação da economia, perfil dos produtos e clientes etc.),
há uma complicação gerada pelos encargos financeiros agregados ao custo. As
empresas do setor podem contabilizar o custo da dívida relacionada com as obras
no custo, razão pela qual o resultado financeiro dessas empresas parece ser tão
bom. O ideal é remover esses encargos do custo para estabilizar um pouco a
margem, não a tornando dependente de como as obras são financiadas, e também
para facilitar a projeção das despesas financeiras. Isso não é tão difícil e as
empresas geralmente facilitam a tarefa, mas é um fator adicional a complicar a
vida de quem estuda o setor.
Um quarto componente do custo é o custo incorrido
em unidades não-vendidas, que se configura no estoque para incorporadoras assim
como para qualquer outra empresa. E a conta de estoque possui um misto dos
problemas do caráter multiperíodo e da agregação e também não está relacionado
com a atividade do período. O estoque é separado em “pronto” e “em construção”,
o primeiro representando o custo dos imóveis já entregues e o segundo os
imóveis que ainda estão com obras em andamento reunindo imóveis em diferentes estágios
de construção. Há o conceito de “estoque a valor de mercado” que representa o
Valor Geral de Vendas (VGV) dos imóveis em estoque, ou seja, o valor pelo qual
a empresa espera vender os imóveis não vendidos. Em tese, você poderia
facilmente calcular a margem bruta dos imóveis prontos, mas precisaria saber
quanto precisamente ainda resta de custos a incorrer para calcular a margem dos
imóveis em construção. Algumas empresas divulgam as suas estimativas dos custos
a incorrer, tanto em unidades vendidas, quanto não vendidas, o que facilita a
análise, porém, outros problemas tornarão essa tarefa complicada. Encargos
financeiros é um fator problemático, na medida em que algumas empresas já
agregam os encargos no valor do estoque ao invés de informá-los em separado e
posteriormente indicar como alocá-los para as diferentes contas do estoque.
Outra parte do estoque é o estoque de terrenos. O
caráter multiperíodo novamente se manifesta aqui, mas, ao invés de causar um
retardo no registro dos valores, na verdade atua como um custo antecipado. O
valor pago nos terrenos é incorporado ao custo dos imóveis e transformado em
custo na DRE conforme as vendas se realizam, a parcela relativa às vendas não
realizadas permanecendo no estoque de custos. E o problema da agregação se
manifesta aqui também na medida em que diferentes terrenos possuem diferentes
custos e também potenciais de gerar VGV. Sendo impossível estimar
individualmente esses fatores, é necessário adotar uma média que minimize o
erro de projeção, que ainda assim pode ser considerável. Para projetar o
estoque de terrenos, o problema volta a ser olhar para frente. As empresas
mantêm estoque de terrenos de forma a se prepararem para realizar lançamentos
no futuro, então o nível do estoque está relacionado com uma variável futura,
não passada. Mas como fazer essa estimativa? Mesmo fazendo uma análise
retrospectiva usando os lançamentos “futuros” com relação a uma data anterior pode
resultar em grandes erros, que podem se dar por conta desse cálculo ser inadequado
ou simplesmente por uma mudança de planos das empresas. Ou seja, a empresa pode
ter aumentado o estoque de terrenos com uma expectativa otimista de
lançamentos, mas a situação do mercado pode ter mudado e forçado a empresa a
realizar menos lançamentos. Dessa forma, estoque de terrenos é mais um pedaço
complicado do quebra-cabeça das incorporadoras.
Por conta disso tudo, o caráter multiperíodo das
empresas de construção e a sua agregação de projetos tão diferentes geram
problemas na estimativa das receitas, custo, contas a receber e estoques. Seria
possível citar outras contas que sofrem com esses mesmos problemas, mas, ao
invés de somar, acho que seria uma boa hora para multiplicar os problemas. Todas essas questões são exacerbadas
quando se considera que, conforme as regras contábeis, alguns projetos devem
ser contabilizados como Investimentos e o restante consolidado a 100%, gerando
as contas que eu particularmente considero as mais difíceis de trabalhar:
Participações Societárias, e sua correspondente na DRE, Equivalência
Patrimonial, e Participações Minoritárias, no Patrimônio Líquido, mas,
principalmente, na DRE afetando o lucro líquido atribuído ao controlador.
As empresas geralmente divulgam seus números
considerando consolidação 100% e também considerando apenas a participação da
empresa, mas uma terceira possibilidade deveria ser criada supondo consolidando
proporcional de tudo, inclusive dos projetos que a empresa não controla. Sem discutir
o mérito do ponto de vista da Contabilidade, apenas na sua implicação prática
para o usuário das informações contábeis, Participações Societárias e
Equivalência Patrimonial infelizmente atuam como uma caixa preta. Dentro dessas
contas, estão agregados Contas a Receber e Estoques na primeira, Receita e
Custos na segunda. Sem saber os valores individuais, fica muito mais difícil
trabalhar na projeção dessas contas considerando as vendas realizadas e o
andamento das obras. Ou seja, temos que trabalhar com contas em diferentes
formas de consolidação, 100% (ou proporcional, dependendo do que a empresa
disponibiliza) para as vendas e “100%, exceto projetos sem controle” para o
caso das demais contas que devemos projetar. Para ilustrar como isso é um
problema, não podemos calcular a margem do estoque pronto, que em tese deveria
consistir em dividir o lucro bruto (Estoque a Valor de Mercado – Estoque contábil)
pelo estoque pronto a valor de mercado, mas que precisaria de um acréscimo para
considerar o estoque dos projetos não controlados. Para piorar, a parcela off-balance do Contas a Receber não
entra na Participação Societária.
Quanto à Participação Minoritária, o ideal seria
que cada projeto fosse analisado em separado para depois “consolidar
proporcionalmente independente do controle” e chegar ao lucro líquido do
projeto para só depois separar a parcela atribuída para a empresa da parcela
dos demais sócios nos empreendimentos. Porém, isso não é possível. Uma
abordagem é estimar a participação minoritária típica, que, porém, costuma
variar bastante ao longo do tempo. Um meio termo seria as empresas facilitarem
e ou terem próximo de 100% do empreendimento ou não ter o controle do
empreendimento (eliminando, assim as participações minoritárias), mas é óbvio que
não podemos esperar que as empresas ajustem suas práticas para facilitar o
trabalho dos analistas (muito embora, algumas empresas acabem atuando
exatamente dessa maneira).
Eu poderia continuar citando outras contas afetadas
pelos problemas já mencionados, mas para finalizar gostaria de acrescentar
outro problema, a volatilidade. Isso afeta principalmente lançamentos e vendas,
um trimestre com baixo volume de lançamentos podendo ser seguido por um
trimestre com o dobro de lançamentos, por exemplo. O volume de vendas, que está
relacionado com o de lançamentos, também pode variar de maneira pronunciada
trimestre a trimestre. Essa volatilidade acaba não se transferindo totalmente
para os resultados da empresa, na medida em que mesmo um trimestre com baixas vendas
pode ainda ter números decentes (ou seja, que não apresentem queda na proporção
da queda nas vendas) por conta da forma como a receita é reconhecida. Mesmo
assim, é muito mais difícil trabalhar com números tão voláteis. E como não
poderia faltar mais um “para piorar” nesse texto, para piorar o volume de
lançamentos pode ser zero, ou até, em casos mais extremos, negativo (com
cancelamento de projetos). A questão é: como modelar isso? Seria possível
utilizar um modelo para estimar o volume de lançamentos de acordo com diversos
parâmetros, mas talvez esse modelo não consiga prever lançamento zero, que se
tornou uma prática comum entre as incorporadoras no atual estágio da economia
brasileira.
Então, para resumir, empresas de construção civil
são difíceis de analisar por conta do caráter multiperíodo de diversas contas,
o problema de agregação e a volatilidade, fatores potencializados pela
“ocultação” de valores que são contabilizados de maneira extremamente agregada
como “Participação Societária”.
Fonte da imagem: Wikimedia
Commons
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