Em um texto anterior, escrevi sobre a necessidade de narrativas para dar sentido à avaliação de uma empresa. Mencionei que uma maneira de entender essa ideia de narrativa é através de um modelo teórico que mostre como ocorrem as entradas e a saídas de caixa. Nesse texto, vou desenvolver essa ideia.
Para avaliar uma empresa, é necessário entender a
dinâmica das saídas e entradas de caixa e as relações entre balanço
patrimonial, resultados e caixa. Cada setor possui a sua própria dinâmica e
mesmo empresas dentro de um mesmo setor podem ter comportamentos diferentes, em
especial quando desenvolvem outros tipos de atividades (empresas de shopping
center com empreendimentos imobiliários, ou incorporadoras com shoppings, por
exemplo).
Uma maneira de formalizar essa compreensão é
através do desenho de um esquema, que eu chamei de modelo teórico. O melhor
modo de explicar é através de um exemplo, como o que se segue abaixo para
incorporação imobiliária. Aproveito e explico o entendimento básico do setor.
* POC = Porcentage of Completion (Porcentagem de
Andamento da Obra).
Esse é um ciclo que começa e termina no caixa. A
empresa investe na compra de terrenos (que ficam no Estoque) para futuros
empreendimentos e também precisa gastar na construção dos imóveis dos
empreendimentos já lançados. Os terrenos serão utilizados nos lançamentos e
incorporados ao custo dos empreendimentos, ou seja, no estoque para as unidades
não vendidas e para o Custo na DRE para as unidades já vendidas.
Incorporação imobiliária possui uma característica
bem peculiar que é o uso (mais do que outros tipos de empresas) de dados não
contábeis que não entram nem nas Notas Explicativas e são evidenciados nos
Comentários da Administração (ou no release
de resultados, no Brasil as duas coisas sendo a mesma coisa). O estoque
contábil tem uma contrapartida fora do balanço chamada de Estoque a Valor de
Mercado, que é o valor geral de vendas (VGV) das unidades lançadas e não
vendidas. É importante separar o estoque a VM em três componentes, Lançamentos,
Imóveis em Construção e Estoque Pronto. O primeiro se refere a empreendimentos
lançados recentemente, o segundo se referindo aos empreendimentos em andamento
e o último aos empreendimentos já encerrados e entregues. Cada um desses
componentes possui a sua própria “velocidade de venda”, lançamentos geralmente
vendendo mais enquanto ainda são considerados lançamentos (primeiro trimestre,
por convenção) e o estoque pronto vendendo mais lentamente.
Outra peculiaridade do setor é a forma como
reconhece receita e custos, conforme a evolução financeira das obras. Em outros
tipos de empresa, venda é basicamente igual à receita, mas isso não ocorre com
construção civil. Por exemplo, a empresa vende um imóvel de R$ 100 mil onde já
gastou R$ 30 mil, quando a estimativa é que a obra custe R$ 60 mil. Esses R$ 30
mil estavam no Estoque contábil e se transformam em custo após a realização da
venda. O andamento da obra é de 50% e a receita no ato da venda é de R$ 50 mil.
Conforme a obra vai evoluindo, o restante do valor de venda vai se convertendo
em receita e os desembolsos em custo. Caso o cliente tenha pago mais do que R$
50 mil, o excedente, o valor que não foi ainda convertido em receita, é
contabilizado como Adiantamento de Clientes no Passivo. Caso tenha pago menos,
o valor remanescente é contabilizado como Contas a Receber no Ativo.
Outro valor “fora do balanço” é o Receitas a
Apropriar, que no exemplo acima se referem aos R$ 50 mil que ainda precisam se
tornar receita. Nas Notas Explicativas, as empresas costumam evidenciar o valor
das Receitas a Apropriar e em muitos casos, talvez apenas nos comentários, soma
o Receitas a Apropriar ao Contas a Receber, e essa parcela adicional é
conhecida como “off-balance”, fora do balanço. Conforme a obra vai evoluindo e
o tempo vai passando, a empresa vai recebendo os valores das vendas, encerrando
o ciclo que se perpetua com a compra de terrenos e a realização de novos
lançamentos.
Sem esse entendimento, é impossível avaliar uma
incorporadora como todas essas características próprias. Mas mesmo para
empresas mais simples, é importante realizar esse esquema, mesmo que de maneira
informal. O mais importante é entender os investimentos de capital da empresa,
que é o nexo entre crescimento e desembolsos de caixa. Para crescer, uma
empresa precisa realizar investimentos, que podem já ter ocorrido, inclusive.
Ou seja, investimento é uma condição necessária, mas não sincrônica. A empresa
pode estar crescendo com base nos ativos investidos nos últimos trimestres e já
não precisa de novos investimentos, podendo apenas colher o que plantou. Ou
pode ter que fazer investimentos para suportar o alto crescimento ou para
preparar o caminho para o crescimento futuro, podendo até ser um futuro
próximo. Em varejo, por exemplo, a empresa precisa reinvestir em manutenção das
lojas, mas pode também investir na abertura de novas lojas que devem resultar
em crescimento de receitas.
De maneira rápida, a maior parte dos investimentos
de shopping centers são em novos empreendimentos, no fim sendo um grande
investimento para um grande empreendimento que, quando completado, elevará a
receita para um novo patamar. Porém, posteriormente não serão necessários
grandes reinvestimentos nos shoppings, que são ativos de longo prazo com longa
vida útil. Varejistas realizam investimentos de maneira mais persistente, tendo
que constantemente reinvestir nas lojas atuais (ativos de médio prazo) e abrir
novas lojas para atender a demanda crescente (se for esse o caso). Já para locadoras
de carros, precisam aumentar a frota para acompanhar a demanda crescente
(novamente, se for esse o caso), mas possuem como peculiaridade a constante
venda dos veículos antigos muito antes do final de sua vida útil. Ou seja, três
tipos de empresas com dinâmicas totalmente diferentes entre si e ainda mais com
relação à construção civil.
Ao estudar pela primeira vez um setor, pode ser
importante gastar algum tempo para entender o “modelo teórico” da empresa, que
servirá como base para a construção da narrativa que irá formar a avaliação da
empresa.
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