Um tema ao qual Aswath Damodaran, uma das
principais referências em avaliação de empresas, tem se dedicado é ao das “narrativas
de investimento”. Não acompanhei tanto os trabalhos dele a esse respeito, mas
desenvolvi algumas ideias que vão na mesma linha, que exponho nesse texto.
O meu ponto de vista é que é indispensável a
existência de uma narrativa para uma boa avaliação. Só dessa maneira que os
números passam a ter algum sentido e conexão com a realidade. Penso que
avaliação é menos uma questão de fazer conta e mais sobre como utilizar os
números apresentados pela empresa para realizar projeções realistas sobre o
futuro desempenho econômico da empresa levando em conta as particularidades
próprias da empresa e do setor.
No meu entender, pensar em avaliação como uma
narrativa sequer envolve necessariamente trabalhar para convencer o leitor
sobre a sua tese de investimento. Se você não tem uma narrativa, mesmo que
informalmente, os principais números relacionados com a avaliação (crescimento,
margens, investimento, risco etc.) não farão sentido e essa desconexão com os
fatos irá inevitavelmente resultar em um relatório irrealista. Ninguém sabe
como será o futuro, mas uma boa avaliação requer menos clarividência e mais que
os números utilizados tenham alguma chance de serem verdadeiros, de acordo com
a conjuntura econômica, com os dados históricos e com a forma como as
variáveis-chave se comportam de acordo com esses fatores. Por exemplo, é
possível projetar expansão na receita para uma empresa em um momento de crise,
criando uma narrativa de que a empresa vem conseguindo obter resultados
positivos mesmo nesse cenário, ou que esse setor está resistente à crise ou
outro argumento nessa linha. Nesse sentido, narrativa se trata menos de
convencer alguém de que os seus números estão certo e mais de convencer a si
mesmo a respeito do realismo de suas projeções.
É por isso que é necessário conhecer o setor de
atuação, pois esse conhecimento é que faz com que uma narrativa que dê sentido
aos números da empresa possa ser criada. Esse conhecimento, mesmo que
superficial, permite entender quais são as fontes de receita da empresa e como
elas devem se comportar ao longo do tempo dependendo da conjuntura, onde que as
empresas precisam investir e por aí em diante. Nos seus trabalhos, Damodaran
utiliza várias empresas como exemplos, examinando as empresas em termos de
geração de receita e necessidades de investimento, que produzem narrativas
totalmente diferentes para uma GM e uma Ferrari, embora ambas pertençam ao
mesmo setor de atuação.
Muito foco é dado para a receita, mas penso que é
até mais importante essa questão do investimento. Empresas de shopping centers
investem em Propriedades para Investimento (antigamente classificadas como
Imobilizado), varejistas investem em alguns Imobilizados (e é necessário
distinguir quais ativos precisam receber investimentos dentro dessa conta) e
para construtoras o investimento é realizado no capital de giro. Tive uma
grande dificuldade inicial para avaliar empresas de construção civil, pois as
características do setor são totalmente diferentes de outros tipos de empresa.
O setor possui normas contábeis bem específicas, mas essa é apenas parte de um
problema que eu já analisei em texto
anterior. Dizendo de outro modo, o setor possui uma narrativa própria e sem
entender essa narrativa é impossível fazer uma avaliação porque os dados
históricos não fazem sentido (se você tentar pensar em uma construtora como se
ela fosse uma varejista) e sem esse nexo com a realidade é impossível fazer
qualquer projeção.
Pensar dessa maneira também ajuda a corrigir erros
da avaliação, muito comuns quando se trabalha pela primeira vez com a empresa
ou com o setor. Um valor justo muito acima ou muito abaixo do valor de mercado
provavelmente é fruto de uma avaliação incorreta, mas pode não ser se o
analista for capaz de explicar essa discrepância para além do “o mercado é
irracional” ou “o mercado está excessivamente otimista/pessimista” e outros
argumentos genéricos. Sem querer entrar em maiores detalhes, foi dessa maneira
que entendi que não é adequado passar tão rapidamente para uma perpetuidade que
envolvesse elevados reinvestimentos para empresas de shopping centers. A
narrativa que pensei é que por se tratarem de ativos de longa vida útil, não
seria necessário reinvestir em remodelação e manutenção desses shoppings por
algum tempo, a empresa podendo distribuir mais caixa aos acionistas por não ter
esse desembolso. É só pensar em um shopping recém-inaugurado e considerar que
não será necessário realizar grandes reinvestimentos por algum tempo. Na
verdade, pelo que percebi ao encontrar os demonstrativos contábeis de um
shopping isolado, já bastante antigo, a depreciação acumulada pode chegar muito
próxima de 100% do custo sem que o empreendimento esteja caindo aos pedaços. Ou
seja, a perpetuidade para esse tipo de empresas deveria necessariamente vir
vários anos no futuro, quando os reinvestimentos teriam que ser realizados para
a manutenção do valor econômico do empreendimento. Essa narrativa faz sentido
para esse setor, mas, por enquanto, só utilizei esse procedimento para empresas
de shopping centers.
Caso não seja possível criar uma narrativa realista
e plausível que justifique o atual patamar de preços, então é mais seguro
afirmar que o mercado está cometendo um erro de avaliação ou, no mínimo, que
paga atualmente um preço muito elevado por alguma coisa sem grandes chances de
ocorrer (naturalmente há divergências sobre o que é “realista” e “plausível”).
Penso que, antes de emitir um parecer que signifique um grande potencial de
valorização ou desvalorização, o analista deveria ser bastante crítico com a
avaliação que faz e testar narrativas alternativas que possam afetar os
resultados de seu cálculo. Ao analisar uma ação em específico (não vou dizer
qual), tive bastante certeza em emitir um parecer ao utilizar os números mais
favoráveis para a narrativa dominante (o atual preço da ação) e nem assim
chegar ao patamar em que as ações estavam sendo negociadas. É sempre possível
que alguém saiba algo que eu nem saiba por ter informações privadas ou
privilegiadas superiores, mas o fato é que não poderia afirmar com segurança
que a ação estava sendo negociada ao seu valor justo.
Para reforçar um ponto, pensar em termos de
narrativa pode não necessariamente envolver uma questão de convencimento, mas
em muitos casos mero bom senso e plausibilidade. Por exemplo, é necessário
conectar investimento e crescimento. Para que a empresa cresça, é necessário investimento,
que pode ter ocorrido antes do crescimento ou simultaneamente. Um erro comum em
avaliação é esquecer desse fator e é importante sempre estabelecer essa
relação. Outros pontos já são tradicionais em avaliação, como, por exemplo, não
estabelecer uma taxa de crescimento na perpetuidade maior do que a taxa de
crescimento da economia, de outra forma, no longuíssimo prazo a empresa se
tornaria maior do que a economia. Podemos ainda incluir questões de competição
empresarial (é plausível manter a margem bruta, se a concorrência vai
aumentar?) e outros fatores que podem expandir ainda mais essa discussão. A
plausibilidade da história que os números contam, mesmo que de forma implícita, garante a validade para a avaliação.
Do lado do usuário do relatório de avaliação, seria
necessário entender de forma narrativa os motivos que levam ao elevado
potencial apontado pelo relatório e ser bastante cético caso a narrativa passe
apenas pela irracionalidade ou ignorância do mercado de forma abstrata. Vejo
muitos casos em que a justificativa passa por fatos já de pleno conhecimento
público (a empresa cresce apesar da crise, possui uma elevada margem, baixo
endividamento etc.) e pouca explicação sobre onde o mercado pode estar
cometendo um erro de julgamento. Talvez isso seja mais um problema do
comentário jornalístico a respeito do relatório do que a avaliação em si, mas
penso que pensar em termos de narrativas pode ajudar a melhorar a interpretação
de relatórios de avaliação.
Uma possível maneira de compreender a narrativa é
através da criação de um modelo teórico sobre as entradas e saídas de caixa,
modelo que é específico para cada setor de atuação empresarial. Em um futuro
texto, pretendo explicar como seria um modelo teórico nesse sentido com alguns
exemplos.
Uma boa maneira de resumir o meu ponto de que
narrativas são essenciais para avaliação é que esse é, na minha opinião, o
único antídoto para o fato de Excel aceitar tudo (exceto referência circular). Pela
mera matemática, é possível chegar a qualquer número que se queira chegar. Ou
ainda, um avaliador que domine minimamente a técnica de avaliação pode chegar a
um valor justo e utilizar o primeiro número que sai da planilha como o seu
preço-alvo. A solução para esse problema é o analista pensar em termos de uma
narrativa que conecte os números com a realidade de forma a dar mais validade
para a sua avaliação, nem que esse seja um esforço interno que não se reflita
no relatório.
Fonte da imagem: http://www.mywritingblog.com/2014/10/guest-post-writing-tense.html
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