segunda-feira, 5 de abril de 2010

A natureza do governo



(The nature of government)
Ayn Rand – 1963
Ensaio publicado no livro Virtue Of Selfishness (e republicado no Capitalism: The Unkown Ideal)

Quando se estuda o objetivo das empresas, é inevitável tratar do papel que o governo tem na economia. O governo deve ficar fora dos assuntos econômicos e deixar o livre mercado (ou seja, a livre interação entre as pessoas) cuidar da economia? O governo deve regular os agentes privados? Deve estimular a economia? Deve suavizar os ciclos de baixa? Deve dirigir a economia? Deve controlar totalmente a economia sem dar liberdade alguma às pessoas?

Não pretendo tratar agora de todas essas questões, tarefa complexa e que demandaria muito mais espaço neste blog. Demandaria também mais tempo e esforço de minha parte para alcançar respostas na melhor das hipóteses insatisfatórias. Porém, como dito no começo, é inevitável tratar desse assunto. Para prosseguir com os meus textos que tratam do assunto, devo escrever algo sobre o papel do governo. A solução que encontrei foi analisar o que pensa sobre o governo uma autora que defende um estado mínimo e defende as liberdades individuais, sem, no entanto, negar que um Estado deva existir. Essa será a linha mestre desse texto: as razões para alguém que mesmo quem não tem nenhuma simpatia por um Estado ainda assim defenda a sua existência.

Ayn Rand, no ensaio A natureza do governo, começa com uma definição de governo: “uma instituição que detém o poder exclusivo de forçar certas regras de conduta social em uma dada área geográfica”. Essa idéia não é nova, sendo a definição dada por Max Weber de Estado como monopolista do uso legítimo da força escrita em outras palavras. O ponto principal da argumentação da autora é que a força serve para submeter a vontade das pessoas à vontade de quem usa a força e que só é legítimo usar a força para garantir os direitos individuais. Pessoas ou grupos de pessoas não podem (ou não deveriam poder) usar da força contra outras pessoas ou grupos e que só o Estado deveria poder fazer isso justamente para garantir os direitos individuais. Só a força pode violar os direitos individuais e é necessário que alguém (Estado) use do mesmo meio para coibir a violação desses direitos.

O uso da força é um instrumento altamente tentador. Deixado à discrição das pessoas o uso da força, as pessoas iriam ou procurar meios de usar da força para realizar seu interesse próprio ou seriam forçadas a despender recursos para se proteger da força dos outros. Por isso, seria necessário um árbitro neutro para mediar conflitos e impedir o uso da força. Esse árbitro neutro, porém, não deve poder tomar suas decisões com base em critérios próprios, deve se sujeitar a regras que as mesmas pessoas que devem ser protegidas do uso da força concordaram que devem ser seguidas e concordam que a força deve ser usada contra elas caso descumpram essas regras. Segundo Rand, seria essa a função do Estado e a origem das leis. “Um governo é o meio de colocar o uso retaliatório da força sob um controle objetivo – ou seja, sobre leis objetivamente definidas”. As leis restringem a atuação do governo e impedem (ou deveriam impedir) que as pessoas que controlam o Estado usem de seus poderes extraordinários de acordo com seu capricho, violando os direitos individuais que deveriam estar protegendo. Viver em uma sociedade livre e civilizada implica o abandono do uso da força que deve ser exercido por uma instituição designada para usar desse meio sob certas regras para proteger os direitos das pessoas.

Dessa forma, as leis restringem a atuação livre das pessoas de forma a justamente assegurar a liberdade das pessoas. O governo e seus agentes, por outro lado, não possuem atuação livre devendo se ater a cumpri a lei. Não é o governo que define as regras: são os cidadãos que definem as leis por meio de seus representantes e a autoridade do governo vem do consentimento do governado. O governo não é o senhor de seu povo, é agente de seu povo, não tem direitos ou obrigações próprias, mas sim aquelas delegadas pelo povo.

A força pode ser empregada de várias formas, em especial a mais evidente, a violência física. Apesar de menos sangrentos (em geral), também são exemplos de uso ilegítimo da força o rompimento unilateral de contratos (uma parte se beneficia da transação e força a outra a não receber o que foi prometido), fraude (o recebimento de algum valor por uma parte sob falsas promessas de retribuição à outra) e extorsão (a ameaça do uso da força condicionada ao não recebimento de um valor). Todos os quatro casos acima seguem um mesmo princípio, o de que ninguém pode obter valor (dinheiro, produtos, trabalho etc.) de outra pessoa sem o consentimento dessa pessoa e que o direito de posse não pode ser deixado ao arbítrio de alguém (seja do usurpador, seja de uma terceira parte não orientada por leis objetivas).

Assim, a autora vê, sob essa perspectiva, três funções principais do Estado: poder de polícia (proteger as pessoas de criminosos), forças armadas (para proteger os cidadãos de invasores estrangeiros) e cortes para resolver disputas entre as pessoas de acordo com uma lei. Sem um governo, nas palavras de Rand, a sociedade estaria à mercê do primeiro criminoso que surgisse e levasse a sociedade ao caos e à guerra de gangues. A existência do Estado possibilita a convivência em sociedade, protegendo quem extrai e distribui benefícios com transações consensuais e coibindo que as pessoas façam mal uma às outras pelo meio da submissão da vontade dos outros.

Ayn Rand termina o ensaio com a seguinte preocupação a respeito dos Estados Unidos em sua época: “Ao invés de ser protetor dos direitos das pessoas, o governo está se tornando o mais perigoso violador; ao invés de guardar a liberdade, o governo está estabelecendo a escravidão; ao invés de proteger as pessoas dos iniciadores do uso da força, o governo está iniciando a força e coerção em qualquer modo que lhe agrada; ao invés de servir como instrumento de objetividade nas relações humanas, o governo está criando um reino mortal e subterrâneo de incerteza e medo por meio de leis não objetivas cuja interpretação é deixada para as decisões arbitrária de burocratas aleatórios; ao invés de proteger as pessoas da injúria por capricho, o governo está usurpando para si o poder do capricho ilimitado – de forma que estamos rapidamente nos aproximando do estado da máxima inversão: o estágio onde o governo é livre para fazer o que lhe agradar, enquanto que os cidadãos só podem agir sob permissão”. Uma das fontes para tal estado de coisas é que as leis deixam de ter objetividade para serem ditadas pelas boas intenções.

Há de se acrescentar mais algumas funções ao Estado dentro do conceito de falhas de mercado, em conformidade com as idéias expostas pela autora. O estado que uma anarquia poderia causar, conforme descrito por Rand (uma sociedade incivilizada), pode ser entendido como uma falha de mercado, ou seja, as pessoas tomando decisões livremente podem acabar obtendo resultados socialmente indesejáveis. Em qualquer livro texto de economia discute-se três falhas de mercado, a assimetria de informações, as externalidades e os bens públicos, algo a ser discutido em outro texto. A responsabilidade limitada das empresas, garantida por lei, também é algo que requer outro texto.

Isso é o que alguém sem a menor simpatia pelo governo acredita que essa instituição deva fazer. Se o Estado deveria fazer algo mais é algo a ser discutido em outro lugar, em outro momento.

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