“Rimos seis meses; Vamos chorar seis anos”, A Saga Brasileira, pg. 73 |
O Brasil, a exemplo de outros países da América do Sul, não tem um bom histórico de inflação (alguns não têm um bom presente com a inflação). Até o Plano Real em 1994, o Brasil alternava entre períodos de inflação alta (bem acima do nível atual, que é alto) e hiperinflação. Na tentativa de reduzir a inflação, diversos pacotes econômicos foram lançados no período da redemocratização, nenhum tendo sucesso até o já mencionado Plano Real. Nesse texto, análise do primeiro desses pacotes, o Plano Cruzado.
Contexto
Fonte:
Banco Central do Brasil
O gráfico
acima indica que expressivo aumento geral de preços nunca foi uma novidade na
economia brasileira, mas a inspeção visual permite notar uma aceleração a
partir dos anos 1980. No gráfico abaixo, esse período em foco, agora não em
termos de índice de inflação mensal, e sim aumento acumulado de preços.
Fonte:
Banco Central do Brasil
Foi nesse
cenário que o primeiro governo civil desde 1964 assumiu o poder. Se na economia
a situação não era das mais animadoras para a população, principalmente no que
se refere à inflação, na política ainda havia o choque da morte de Tancredo
Neves e certo ceticismo com o vice-presidente ligado aos militares, José
Sarney.
Era politicamente
conveniente debelar a inflação e o novo governo procuraria encontrar maneiras
de se encarregar desse legado dos militares, inclusive por conta de não haver
(na visão dos formadores de políticas públicas) causas mais urgentes como
crescimento baixo ou balança de pagamentos deficitária. Eis que surge o Plano
Cruzado.
Diagnóstico
André Lara
Resende e Pérsio Arida foram os principais mentores do Plano Cruzado.
Professores da PUC/RJ que tinham voltado recentemente de cursos do exterior,
criaram o que seria chamado de Plano Larida. O diagnóstico era de que a
inflação não estava relacionada com a atividade econômica e que tinha um
caráter inercial, ou seja, que os preços subiam por continuidade de um movimento
passado por conta da indexação (por meio de correção monetária), preços eram
reajustados levando em conta a inflação passada, o processo se
retroalimentando.
O primeiro
(de vários) Ministro da Fazenda na Nova República foi Francisco Dornelles, mais
adepto do gradualismo ortodoxo de redução do déficit público. Como a receita
não vinha dando certo, Dornelles caiu e assumiu Dilson Funaro.
No final
de 1985, diversas medidas foram tomadas para preparar terreno para futuros
planos econômicos, como um pacote fiscal para aumentar a arrecadação e vinculação
de preços controlados à Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN). A
ORTN era um título público federal que paga remuneração mais correção monetária
e que era amplamente usado como um indexador.
“Iniciamos hoje uma guerra de vida e morte
contra a inflação”, José Sarney, presidente do Brasil na época.
Em 28 de
fevereiro de 1986, passou a valer o Plano Cruzado, elaborado no decreto-lei nº 2.283/86, com a introdução uma nova moeda (o
Cruzado) e uma série de medidas. Até a emissão de notas de cruzados, valeria a
moeda antiga, o Cruzeiro, com três zeros a menos (1.000 Cruzeiros = 1 Cruzado,
por exemplo). Os salários foram convertidos pelo salário real médio dos últimos
seis meses, mais abono de 8%, aumento no salário mínimo para Cz$804,00 (aumento
aproximado de 16%), com gatilho salarial disparado toda vez que a inflação
chegasse a 20%. Edmar Bacha, um dos mentores do Cruzado, declararia muito
depois que essas medidas relativas aos salários foram os maiores erros do plano
e que custou 10 anos ao país. Os aluguéis também sofreram um reajuste
com base na média do valor real dos aluguéis nos últimos seis meses. Os preços
de diversos produtos foram congelados aos níveis de 27/02/86, exceto pela
energia elétrica (estatal) que teve um aumento de 20%. Essa medida faz parte do
chamado “choque heterodoxo” sugerido por diversos economistas e tomou muitos
empresários de surpresa com preços defasados em relação a outros. A taxa de
câmbio foi fixada no nível de 27 de fevereiro. Para ativos financeiros,
substituiu-se a ORTN pela OTN (Obrigação do Tesouro Nacional), que teve seu
valor congelado por 12 meses. Os juros acima da correção monetária se tornaram
juros nominais (a exemplo da OTN) e contratos pré-fixados sofreriam uma
desvalorização diária com base na inflação média nos meses anteriores ao Plano
Cruzado (seguindo o que se chamou de “tablita”), para eliminar a inflação
embutida nos juros. Isso fez com que dívidas pré-fixadas recebessem um
decréscimo na hora de quitar a dívida. Nesse período, foi criado o mercado
bancário e o CDI (não por outro motivo, a série histórica do
CDI começa em 06/03/86).
Não foram
estabelecidas metas para política fiscal ou monetária. No lado monetário, houve
um aumento do M1 de 64% em março de 86 (na média dos dias úteis do mês) e
18,54% nos três meses seguintes (fonte: Banco Central). Na parte fiscal, a
expectativa era zerar o déficit operacional, o que não ocorreu, mas ao menos
eliminou-se a “Conta Movimento”, que permitia o Banco do Brasil exercer a
função de autoridade monetária.
Como foi feito o reajuste de salários
A título
de curiosidade, a tabela abaixo mostra como foi feito o reajuste de salários
para cumprir a regra de “média do poder de compra dos últimos seis meses”.
A média da
última coluna, acrescida pelo abono, resulta no salário após o Plano Cruzado.
Basicamente, a tabela leva o valor dos salários para data de 28/02/86 e depois
tira a média. Essa tabela mostra o cálculo especificamente para o salário
mínimo. A média da última coluna é 692.801,89. Se fosse um salário comum, a
pessoa receberia um abono de 8%. Como é o salário mínimo, o aumento foi maior e
algumas fontes dizem que o aumento foi de 15% e outras de 16%. Curiosamente, as
duas informações estão corretas em certo sentido, embora 16% seja mais precisa.
No Decreto-lei 2.283/86, o salário mínimo foi estabelecido em 800 cruzados
(alta de 15,47%). No Decreto-lei seguinte (2.284/86), o valor foi corrigido
para 804 cruzados (alta de 16,05%).
Impacto social
Como
mencionado, a inflação não era um problema novo e a insatisfação com o
acelerado aumento nos preços já era enorme àquela altura. Essa preocupação
popular era uma oportunidade de ganhos políticos e foi exatamente nesse sentido
que surgiu o Plano Cruzado e sua faceta mais visível, o congelamento de preços.
A recepção
inicial foi de euforia. Por decreto, os preços parariam de subir por conta do
congelamento e a inflação estava (supostamente) suspensa. Por convocação do
presidente, os consumidores se tornaram “fiscais” dos preços e denunciavam
preços que estavam em desacordo com o congelamento, lembrando os piores
momentos de regimes ditatoriais, com onda de denúncias, prisões autoritárias,
violência contra comerciantes e depredação contra estabelecimentos acusados de
burlar o congelamento. Nem sempre as denúncias eram procedentes e a
participação popular acaba por tornar as denúncias praticamente processo
sumário, como denunciou Roberto Maksoud, um dos presos por denúncia de
remarcação, em artigo para o jornal O
Estado de São Paulo em 22 de março de 1986.
Em
retrospectiva, o engajamento do consumidor em vigiar preços é visto com
simpatia por muitas pessoas, mas também é possível classificar esse momento
como “ilusão popular e loucura das massas”, para citar o título do livro de
Charles Mackay. Os “fiscais do Sarney” iam atrás de todos os preços, de tarifa
de motel até valor cobrado pela Igreja em casamento. Houve um ativismo grande
por parte da população na fiscalização do congelamento e com o passar do tempo
eles continuariam indo ao varejo em multidões, mas dessa vez para verem se
conseguiam comprar algum produto que estava em falta pelo desabastecimento (ver
próximo tópico).
Além de
aproveitar a situação já anormal de preços não subindo bruscamente dia após
dia, os consumidores se apressavam para aproveitar esse “benefício” pensando
que não duraria muito tempo (como, a bem da verdade, durou pouco). Os juros
baixos também incentivaram as pessoas a resgatar aplicações financeiras e
gastar em produtos que antes não conseguiam, comprar imóveis e realizar sonhos
como viajar ao exterior (piorando as contas externas brasileiras). Dívidas
decrescentes por conta da tablita aumentavam ainda mais a euforia e a
disposição a assumir novas dívidas.
Era
extremamente impopular ser contra o Plano Cruzado, embora houvesse muitas
razões para isso (ver último tópico do texto). Isso se refletia na imprensa,
que por sua vez também refletia a impressão popular de prosperidade e de que o
plano estava dando certo. Os empresários ficavam entre as necessidades do
negócio e a pressão popular que ignora essas questões e a intervenção do poder
público, acusados (até
hoje) de boicotar o Plano.
Os
mentores do Cruzado tinham se tornado celebridades a ponto de o ex-ministro da
Fazenda e do Planejamento (em momentos distintos) Mario Henrique Simonsen
advertir que se o ministro da fazenda é popular, é porque está fazendo algo de
errado (ver A
Saga Brasileira, página 64). Os políticos também se tornaram extremamente
populares justamente em um ano de eleição.
“Reze para que dê certo. Agora vai ou
racha”, Dilson Funaro.
Superficialmente,
o Plano Cruzado foi muito bom enquanto durou. A inflação de preços registrou
até deflação em alguns meses após o congelamento, o consumo aumentou
expressivamente e o PIB registrou alta expressiva (como já vinha ocorrendo nos
últimos dois anos). O congelamento de preços era visto por alguns como a
oportunidade para fazer reformas que realmente resolveriam o problema da
inflação em definitivo, ou seja, diminuir o déficit público, ou mesmo realizar
reformas econômicas mais gerais. Mas, em ano eleitoral, os políticos preferiram
focar em obter ganhos políticos com o plano e preferiram se fiar no elemento
mais frágil do plano, justamente aquele que dava aparência de sucesso. Os
mentores do Cruzado pediam para que o governo cortasse gastos como parte do
Plano, mas obviamente que não foram atendidos.
Na parte
da oferta, como era inevitável, o controle de preços resultou em filas,
cobrança de ágio no mercado paralelo, distorções como um carro usado sendo mais
caro do que um novo e a simples falta de produtos para vender. A exemplo de uma
corrida bancária, o boato de que um produto iria faltar provocava uma corrida
aos mercados e acaba concretizando o boato. Um fator que ajudou os índices de
inflação a mostrarem uma variação baixa de preços foi que os coletores do IBGE
simplesmente não encontravam os produtos para verificar os preços.
Tentando
corrigir o problema sem atacar as suas causas, o governo tentou estimular a
oferta através de isenções de impostos, subsídios e importações (que a
burocracia estatal ajudou a atrapalhar) e até ações da Polícia Federal para liberar
gado mantido em pasto e não abatido por conta do congelamento. Dentro do
governo, denunciava-se a conspiração de empresários contra o Plano Cruzado e
discutia-se ações quanto a isso. Lançamento de novos produtos ou maquiagem de
produtos para parecerem novos foram algumas táticas para driblar o congelamento
e que não afetariam os índices de inflação.
Bolsas de valores
No pregão
seguinte ao anúncio do Plano Cruzado (04/03/86), o Ibovespa teve a maior
valorização da história até então, 5ª maior hoje em dia, com o triplo do volume
negociado. O fim da correção monetária e a queda nas taxas de juros levou à
migração em massa para bolsa, dólar paralelo e ativos reais, inclusive com uma
grande saída de capital do país, o que, junto com as importações, contribuíram
para a piora das contas externas. Essa migração junto com as altas expectativas
com o pacote levou a bolsa brasileira para um movimento forte de alta nos
próximos meses, até que viesse o Cruzado II e a moratória da dívida.
Fonte:
Economática
Cruzadinho
Em 24 de
junho, o governo criaria um novo pacote que seria apelidado de “Cruzadinho”,
que procurava desaquecer o consumo sem abrir mão totalmente do congelamento.
Passou a haver um empréstimo compulsório na aquisição de alguns produtos, o que
na prática acabou elevando esses preços, sem que isso afetasse o índice de
inflação oficial. Esses empréstimos serviriam para financiar o Plano de Metas,
que deveria servir para estimular o investimento e corrigir o desequilíbrio de
oferta, mas isso acabou não funcionando pela desconfiança dos empresários para
investir.
Cruzado II
Em 21 de
novembro, não coincidentemente após as eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte e governos estaduais, com esmagadora vitória do governo (PMDB),
veio o Cruzado II. Os preços foram descongelados, o cálculo do IPC alterado, os
impostos de alguns produtos majorados e o valor da OTN reajustado. As taxas de
juros acabaram sendo elevadas pela incerteza quanto à volta da inflação e o
crédito se tornou mais restrito, o que afetou quem tomou empréstimos durante o
Cruzado. A economia desaqueceu e a balança comercial continuou apresentando
déficits, o que resultaria na moratória de 1987.
Para
piorar, no final de tudo, a inflação de preços voltou tão forte quanto antes.
Inflação = Aumento na base monetária
Um dos
poucos opositores públicos ao Plano Cruzado, Henry Maksoud escrevia para a sua
revista, a Visão, sobre o Plano Cruzado de maneira crítica. Em circulação de
1974 a 1990 sob direção de Maksoud, a revista criticava a política econômica do
governo em pleno regime militar e manteve a postura após a redemocratização.
A respeito
do Plano Cruzado, sua principal crítica era que o Plano não atacava as raízes
do problema e sim o sue aspecto mais visível. Partindo do princípio de que a
inflação é a emissão de moeda sem lastro, Maksoud identificou que a emissão
descontrolada de moeda continuou após o fatídico 28 de fevereiro. Um artigo
publicado em maio de 1986 continha o seguinte gráfico mostrando a inseparável
relação entre a inflação de preços (IGP-DI) e a emissão de moeda (M3):
O
crescimento dos agregados monetários, segundo Maksoud, entre dezembro de 1979 e
janeiro de 1986 foi de:
Base
Monetária (papel moeda em poder do público mais reservas bancárias no Banco
Central): 107 vezes (sempre em relação ao PIB).
M1 (papel
moeda em poder do público e depósitos à vista): 109 vezes
M2 (M1 +
depósitos à prazo + títulos públicos em poder do público): 203 vezes
M3 (M2 +
depósito de poupança): 286 vezes
M4 (M3 +
títulos privados): 363 vezes
As definições
dos agregados leva em conta a situação atual, não da época do Cruzado. Nos
quatro meses após o Cruzado, a base monetária cresceu 2,34 vezes, contra
aumento no PIB de 1,74 vezes em 12 anos.
O simples
controle de preços não acabaria com a inflação, como alguns dos proponentes do
plano sabiam. Mas o Plano Cruzado acabou sendo marcado por isso e nenhuma
medida real para controlar o déficit público e a emissão monetária foi tomada.
Com isso, inevitavelmente, o Plano Cruzado fracassou.
Fontes e outros recursos
A
Saga Brasileira. Miriam Leitão, 2011.
Economia
Brasileira Contemporânea. A.P. Gremaud, M.A.S. Vasconcellos e R.Toneto
Júnior. 6ª Edição. 2007.
O Cruzado
e outras ilusões. Henry Maksoud. 1987.
Fonte da imagem: Banco Central do Brasil
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