segunda-feira, 14 de julho de 2014

Plano Cruzado

Plano Cruzado
“Rimos seis meses; Vamos chorar seis anos”, A Saga Brasileira, pg. 73

O Brasil, a exemplo de outros países da América do Sul, não tem um bom histórico de inflação (alguns não têm um bom presente com a inflação). Até o Plano Real em 1994, o Brasil alternava entre períodos de inflação alta (bem acima do nível atual, que é alto) e hiperinflação. Na tentativa de reduzir a inflação, diversos pacotes econômicos foram lançados no período da redemocratização, nenhum tendo sucesso até o já mencionado Plano Real. Nesse texto, análise do primeiro desses pacotes, o Plano Cruzado.


Contexto

Fonte: Banco Central do Brasil

O gráfico acima indica que expressivo aumento geral de preços nunca foi uma novidade na economia brasileira, mas a inspeção visual permite notar uma aceleração a partir dos anos 1980. No gráfico abaixo, esse período em foco, agora não em termos de índice de inflação mensal, e sim aumento acumulado de preços.

Fonte: Banco Central do Brasil

Foi nesse cenário que o primeiro governo civil desde 1964 assumiu o poder. Se na economia a situação não era das mais animadoras para a população, principalmente no que se refere à inflação, na política ainda havia o choque da morte de Tancredo Neves e certo ceticismo com o vice-presidente ligado aos militares, José Sarney.

Era politicamente conveniente debelar a inflação e o novo governo procuraria encontrar maneiras de se encarregar desse legado dos militares, inclusive por conta de não haver (na visão dos formadores de políticas públicas) causas mais urgentes como crescimento baixo ou balança de pagamentos deficitária. Eis que surge o Plano Cruzado.

Diagnóstico
André Lara Resende e Pérsio Arida foram os principais mentores do Plano Cruzado. Professores da PUC/RJ que tinham voltado recentemente de cursos do exterior, criaram o que seria chamado de Plano Larida. O diagnóstico era de que a inflação não estava relacionada com a atividade econômica e que tinha um caráter inercial, ou seja, que os preços subiam por continuidade de um movimento passado por conta da indexação (por meio de correção monetária), preços eram reajustados levando em conta a inflação passada, o processo se retroalimentando.

O primeiro (de vários) Ministro da Fazenda na Nova República foi Francisco Dornelles, mais adepto do gradualismo ortodoxo de redução do déficit público. Como a receita não vinha dando certo, Dornelles caiu e assumiu Dilson Funaro.

No final de 1985, diversas medidas foram tomadas para preparar terreno para futuros planos econômicos, como um pacote fiscal para aumentar a arrecadação e vinculação de preços controlados à Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN). A ORTN era um título público federal que paga remuneração mais correção monetária e que era amplamente usado como um indexador.

“Iniciamos hoje uma guerra de vida e morte contra a inflação”, José Sarney, presidente do Brasil na época.

Em 28 de fevereiro de 1986, passou a valer o Plano Cruzado, elaborado no decreto-lei nº 2.283/86, com a introdução uma nova moeda (o Cruzado) e uma série de medidas. Até a emissão de notas de cruzados, valeria a moeda antiga, o Cruzeiro, com três zeros a menos (1.000 Cruzeiros = 1 Cruzado, por exemplo). Os salários foram convertidos pelo salário real médio dos últimos seis meses, mais abono de 8%, aumento no salário mínimo para Cz$804,00 (aumento aproximado de 16%), com gatilho salarial disparado toda vez que a inflação chegasse a 20%. Edmar Bacha, um dos mentores do Cruzado, declararia muito depois que essas medidas relativas aos salários foram os maiores erros do plano e que custou 10 anos ao país. Os aluguéis também sofreram um reajuste com base na média do valor real dos aluguéis nos últimos seis meses. Os preços de diversos produtos foram congelados aos níveis de 27/02/86, exceto pela energia elétrica (estatal) que teve um aumento de 20%. Essa medida faz parte do chamado “choque heterodoxo” sugerido por diversos economistas e tomou muitos empresários de surpresa com preços defasados em relação a outros. A taxa de câmbio foi fixada no nível de 27 de fevereiro. Para ativos financeiros, substituiu-se a ORTN pela OTN (Obrigação do Tesouro Nacional), que teve seu valor congelado por 12 meses. Os juros acima da correção monetária se tornaram juros nominais (a exemplo da OTN) e contratos pré-fixados sofreriam uma desvalorização diária com base na inflação média nos meses anteriores ao Plano Cruzado (seguindo o que se chamou de “tablita”), para eliminar a inflação embutida nos juros. Isso fez com que dívidas pré-fixadas recebessem um decréscimo na hora de quitar a dívida. Nesse período, foi criado o mercado bancário e o CDI (não por outro motivo, a série histórica do CDI começa em 06/03/86).

Não foram estabelecidas metas para política fiscal ou monetária. No lado monetário, houve um aumento do M1 de 64% em março de 86 (na média dos dias úteis do mês) e 18,54% nos três meses seguintes (fonte: Banco Central). Na parte fiscal, a expectativa era zerar o déficit operacional, o que não ocorreu, mas ao menos eliminou-se a “Conta Movimento”, que permitia o Banco do Brasil exercer a função de autoridade monetária.

Como foi feito o reajuste de salários
A título de curiosidade, a tabela abaixo mostra como foi feito o reajuste de salários para cumprir a regra de “média do poder de compra dos últimos seis meses”.

A média da última coluna, acrescida pelo abono, resulta no salário após o Plano Cruzado. Basicamente, a tabela leva o valor dos salários para data de 28/02/86 e depois tira a média. Essa tabela mostra o cálculo especificamente para o salário mínimo. A média da última coluna é 692.801,89. Se fosse um salário comum, a pessoa receberia um abono de 8%. Como é o salário mínimo, o aumento foi maior e algumas fontes dizem que o aumento foi de 15% e outras de 16%. Curiosamente, as duas informações estão corretas em certo sentido, embora 16% seja mais precisa. No Decreto-lei 2.283/86, o salário mínimo foi estabelecido em 800 cruzados (alta de 15,47%). No Decreto-lei seguinte (2.284/86), o valor foi corrigido para 804 cruzados (alta de 16,05%).

Impacto social
Como mencionado, a inflação não era um problema novo e a insatisfação com o acelerado aumento nos preços já era enorme àquela altura. Essa preocupação popular era uma oportunidade de ganhos políticos e foi exatamente nesse sentido que surgiu o Plano Cruzado e sua faceta mais visível, o congelamento de preços.

A recepção inicial foi de euforia. Por decreto, os preços parariam de subir por conta do congelamento e a inflação estava (supostamente) suspensa. Por convocação do presidente, os consumidores se tornaram “fiscais” dos preços e denunciavam preços que estavam em desacordo com o congelamento, lembrando os piores momentos de regimes ditatoriais, com onda de denúncias, prisões autoritárias, violência contra comerciantes e depredação contra estabelecimentos acusados de burlar o congelamento. Nem sempre as denúncias eram procedentes e a participação popular acaba por tornar as denúncias praticamente processo sumário, como denunciou Roberto Maksoud, um dos presos por denúncia de remarcação, em artigo para o jornal O Estado de São Paulo em 22 de março de 1986.

Em retrospectiva, o engajamento do consumidor em vigiar preços é visto com simpatia por muitas pessoas, mas também é possível classificar esse momento como “ilusão popular e loucura das massas”, para citar o título do livro de Charles Mackay. Os “fiscais do Sarney” iam atrás de todos os preços, de tarifa de motel até valor cobrado pela Igreja em casamento. Houve um ativismo grande por parte da população na fiscalização do congelamento e com o passar do tempo eles continuariam indo ao varejo em multidões, mas dessa vez para verem se conseguiam comprar algum produto que estava em falta pelo desabastecimento (ver próximo tópico).

Além de aproveitar a situação já anormal de preços não subindo bruscamente dia após dia, os consumidores se apressavam para aproveitar esse “benefício” pensando que não duraria muito tempo (como, a bem da verdade, durou pouco). Os juros baixos também incentivaram as pessoas a resgatar aplicações financeiras e gastar em produtos que antes não conseguiam, comprar imóveis e realizar sonhos como viajar ao exterior (piorando as contas externas brasileiras). Dívidas decrescentes por conta da tablita aumentavam ainda mais a euforia e a disposição a assumir novas dívidas.

Era extremamente impopular ser contra o Plano Cruzado, embora houvesse muitas razões para isso (ver último tópico do texto). Isso se refletia na imprensa, que por sua vez também refletia a impressão popular de prosperidade e de que o plano estava dando certo. Os empresários ficavam entre as necessidades do negócio e a pressão popular que ignora essas questões e a intervenção do poder público, acusados (até hoje) de boicotar o Plano.

Os mentores do Cruzado tinham se tornado celebridades a ponto de o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (em momentos distintos) Mario Henrique Simonsen advertir que se o ministro da fazenda é popular, é porque está fazendo algo de errado (ver A Saga Brasileira, página 64). Os políticos também se tornaram extremamente populares justamente em um ano de eleição.

“Reze para que dê certo. Agora vai ou racha”, Dilson Funaro.
Superficialmente, o Plano Cruzado foi muito bom enquanto durou. A inflação de preços registrou até deflação em alguns meses após o congelamento, o consumo aumentou expressivamente e o PIB registrou alta expressiva (como já vinha ocorrendo nos últimos dois anos). O congelamento de preços era visto por alguns como a oportunidade para fazer reformas que realmente resolveriam o problema da inflação em definitivo, ou seja, diminuir o déficit público, ou mesmo realizar reformas econômicas mais gerais. Mas, em ano eleitoral, os políticos preferiram focar em obter ganhos políticos com o plano e preferiram se fiar no elemento mais frágil do plano, justamente aquele que dava aparência de sucesso. Os mentores do Cruzado pediam para que o governo cortasse gastos como parte do Plano, mas obviamente que não foram atendidos.

Na parte da oferta, como era inevitável, o controle de preços resultou em filas, cobrança de ágio no mercado paralelo, distorções como um carro usado sendo mais caro do que um novo e a simples falta de produtos para vender. A exemplo de uma corrida bancária, o boato de que um produto iria faltar provocava uma corrida aos mercados e acaba concretizando o boato. Um fator que ajudou os índices de inflação a mostrarem uma variação baixa de preços foi que os coletores do IBGE simplesmente não encontravam os produtos para verificar os preços.

Tentando corrigir o problema sem atacar as suas causas, o governo tentou estimular a oferta através de isenções de impostos, subsídios e importações (que a burocracia estatal ajudou a atrapalhar) e até ações da Polícia Federal para liberar gado mantido em pasto e não abatido por conta do congelamento. Dentro do governo, denunciava-se a conspiração de empresários contra o Plano Cruzado e discutia-se ações quanto a isso. Lançamento de novos produtos ou maquiagem de produtos para parecerem novos foram algumas táticas para driblar o congelamento e que não afetariam os índices de inflação.

Bolsas de valores
No pregão seguinte ao anúncio do Plano Cruzado (04/03/86), o Ibovespa teve a maior valorização da história até então, 5ª maior hoje em dia, com o triplo do volume negociado. O fim da correção monetária e a queda nas taxas de juros levou à migração em massa para bolsa, dólar paralelo e ativos reais, inclusive com uma grande saída de capital do país, o que, junto com as importações, contribuíram para a piora das contas externas. Essa migração junto com as altas expectativas com o pacote levou a bolsa brasileira para um movimento forte de alta nos próximos meses, até que viesse o Cruzado II e a moratória da dívida.

Fonte: Economática

Cruzadinho
Em 24 de junho, o governo criaria um novo pacote que seria apelidado de “Cruzadinho”, que procurava desaquecer o consumo sem abrir mão totalmente do congelamento. Passou a haver um empréstimo compulsório na aquisição de alguns produtos, o que na prática acabou elevando esses preços, sem que isso afetasse o índice de inflação oficial. Esses empréstimos serviriam para financiar o Plano de Metas, que deveria servir para estimular o investimento e corrigir o desequilíbrio de oferta, mas isso acabou não funcionando pela desconfiança dos empresários para investir.

Cruzado II
Em 21 de novembro, não coincidentemente após as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte e governos estaduais, com esmagadora vitória do governo (PMDB), veio o Cruzado II. Os preços foram descongelados, o cálculo do IPC alterado, os impostos de alguns produtos majorados e o valor da OTN reajustado. As taxas de juros acabaram sendo elevadas pela incerteza quanto à volta da inflação e o crédito se tornou mais restrito, o que afetou quem tomou empréstimos durante o Cruzado. A economia desaqueceu e a balança comercial continuou apresentando déficits, o que resultaria na moratória de 1987.

Para piorar, no final de tudo, a inflação de preços voltou tão forte quanto antes.

Inflação = Aumento na base monetária
Um dos poucos opositores públicos ao Plano Cruzado, Henry Maksoud escrevia para a sua revista, a Visão, sobre o Plano Cruzado de maneira crítica. Em circulação de 1974 a 1990 sob direção de Maksoud, a revista criticava a política econômica do governo em pleno regime militar e manteve a postura após a redemocratização.

A respeito do Plano Cruzado, sua principal crítica era que o Plano não atacava as raízes do problema e sim o sue aspecto mais visível. Partindo do princípio de que a inflação é a emissão de moeda sem lastro, Maksoud identificou que a emissão descontrolada de moeda continuou após o fatídico 28 de fevereiro. Um artigo publicado em maio de 1986 continha o seguinte gráfico mostrando a inseparável relação entre a inflação de preços (IGP-DI) e a emissão de moeda (M3):

O crescimento dos agregados monetários, segundo Maksoud, entre dezembro de 1979 e janeiro de 1986 foi de:

Base Monetária (papel moeda em poder do público mais reservas bancárias no Banco Central): 107 vezes (sempre em relação ao PIB).
M1 (papel moeda em poder do público e depósitos à vista): 109 vezes
M2 (M1 + depósitos à prazo + títulos públicos em poder do público): 203 vezes
M3 (M2 + depósito de poupança): 286 vezes
M4 (M3 + títulos privados): 363 vezes

As definições dos agregados leva em conta a situação atual, não da época do Cruzado. Nos quatro meses após o Cruzado, a base monetária cresceu 2,34 vezes, contra aumento no PIB de 1,74 vezes em 12 anos.

O simples controle de preços não acabaria com a inflação, como alguns dos proponentes do plano sabiam. Mas o Plano Cruzado acabou sendo marcado por isso e nenhuma medida real para controlar o déficit público e a emissão monetária foi tomada. Com isso, inevitavelmente, o Plano Cruzado fracassou.

Fontes e outros recursos
A Saga Brasileira. Miriam Leitão, 2011.

Economia Brasileira Contemporânea. A.P. Gremaud, M.A.S. Vasconcellos e R.Toneto Júnior. 6ª Edição. 2007.


O Cruzado e outras ilusões. Henry Maksoud. 1987.



Fonte da imagem: Banco Central do Brasil

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