Há diversas
abordagens para transmitir teoria econômica para um público mais amplo. Duas
formas bastante comuns é simplificar à lá Freakonomics
(e Lucro
Sujo, resenhado aqui
e aqui)
ou relacionar com grandes escritores. Quatro livros lançados no Brasil
(brasileiros ou tradução de edições estrangeiras) com participação de Gustavo
Franco são: Economia
em Pessoa, Shakespeare
e a Economia, Dinheiro
e Magia e a Economia
em Machado de Assis. Como hoje é o aniversário de 124 anos de Fernando
Pessoa, vou resenhar o livro sobre o poeta português.
O livro é uma
série de 11 artigos (mais uma “entrevista” com o poeta) escritos por Fernando
Pessoa ele mesmo (ou seja, sem
utilizar um heterônimo) em sua maioria para a Revista de Comércio e
Contabilidade, valendo-se da experiência dele em trabalho de escritório e
empreendedor, já que ele não vivia (ou “subsistia”) apenas de sua poesia, assim
como outros escritores hoje de renome. O que muitos biógrafos fazem notar é que
não havia nenhum aspecto de “martírio” nessas atividades de “vida prática” de
Pessoa e havia sim até um interesse lúdico pela atividade comercial. Apesar de
escrever os artigos com o ortônimo, não se deve pensar que o “verdadeiro”
Pessoa escreve esses artigos, porque, como dizem os especialistas em sua obra
(categoria na qual não me incluo), não há tal coisa como um “verdadeiro”
Pessoa. E tampouco podem ser categorizados como “fingidos” os textos, que não
deixam de expressar opiniões sinceras e genuínas do poeta.
Gustavo
Franco além de escrever a introdução do livro contribuiu com introduções para
cada capítulo e, mais importante, nomeando cada um com um termo que não existia
na época de Pessoa para ressaltar a sua atualidade. O primeiro capítulo, por
exemplo, foi intitulado “Privatização”
e trata de um artigo sobre o monopólio da extração de tabaco concedido a uma
empresa privada. Nesse artigo, Pessoa discute três tipos de organização
empresarial, a administração estatal, o monopólio privado ou o sistema de livre
concorrência. Logo no começo, ele é categórico sobre o primeiro dos tipos: “a
administração do Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis para qualquer
das três entidades [Estado, comércio & indústria e consumidores] com que
essa administração implica: de todas as coisas ”organizadas”, é o Estado, em
qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas”. Pessoa argumenta que
o Estado corre o risco de arruinar a vida social espontânea ao invés de
contribuir para seu melhor funcionamento, incluindo o funcionamento de setores
econômicos importantes. Adicione-se a isso o tipo de trabalhador típico do
serviço público (segundo Pessoa, incompetentes e desleixados). O governo
prejudica a indústria com sua má administração e dessa forma prejudica a si
mesmo, assim como o consumidor, mesmo quando a empresa é administrada para ser
deficitária e “beneficiar” o consumidor (que também é pagador de impostos).
Essa situação não muda se o estado conceder monopólio para uma empresa privada,
que continuará a apresentar os mesmos problemas de falta de concorrência e de
incentivos presentes na administração estatal, além de sua “artificialidade
econômica”. A liberdade econômica, por sua vez, é natural, estimula a
proficiência técnica e tendem a manter os preços e seu mínimo, porém, leva a um
sistema instável e descoordenado. Embora alegue ter tentado ser o mais
imparcial possível, a argumentação de Pessoa parece ser mais favorável ao
regime de liberdade, apesar dos argumentos desfavoráveis, que na minha opinião
são pouco convincentes, exceto talvez no que se refere à formação de monopólio
e a sindicalização por conta da descoordenação e da instabilidade.
O segundo
capítulo é intitulado “Globalização”
ou “A evolução do comércio” pelas palavras de Pessoa, que classifica junto com
a cultura como os traços distintivos das sociedades civilizadas, havendo
relação de paralelismo e de causa e efeito entre esses dois fatores. Segundo
Pessoa, “é no comércio que as relações materiais entre as sociedades atingem o
seu máximo” e “é na cultura que as relações mentais entre os povos conseguem o
seu auge”, de forma que uma sociedade com alto desenvolvimento material e
mental será paralelamente altamente comercial e altamente cultural. A relação
de causa e efeito se dá na medida em que a cultura precisa se abrir para o que
lhe é alheio, ou seja, a novas culturas, e “tende para a universalidade”. E
para se formarem contatos mentais, o meio mais seguro é formar contatos
materiais por meio do comércio entre os povos (ou seja, globalização), contato
pacífico e de longo prazo.
Em seguida,
Pessoa trata da desregulamentação no
capítulo três, escrevendo sobre as legislações que, já naquele tempo, atentavam
contra as liberdades individuais, gerando problemas políticos, sociais e
comerciais, este último sendo o foco do artigo. Pessoa analisa cinco
legislações restritivas: 1) Legislações mercantilistas contra importações para
não afetar o câmbio; 2) Proibição de produtos “de primeira necessidade”; 3)
Tutela estatal sob o consumo, proibindo-se a venda de produtos “nocivos”,
típico do “estado-babá”; 4) legislações que supostamente protegeriam os
trabalhadores; 5) Legislação para proteger os industriais. O autor mostra como
essas legislações prejudicam o comércio, causam distorções e ineficiência na economia
e acabam por se voltar contra aqueles que deveriam beneficiar.
O marketing é o tema do quarto capítulo. É
interessante a caracterização do comerciante como “servidor público” ou “de um
público”, sempre preocupado em agradar a quem serve a fim de obter a sua
recompensa (o lucro). Para melhor servir o consumidor, o comerciante deve
estudá-lo a fim de saber como pensam e para pensar como eles, que é justamente
o que se faz em Marketing, saindo-se do uso dessa palavra apenas para
referir-se à publicidade de produtos. O estudo, segundo Pessoa, deve ser de
três ordens: econômica (conhecer a aceitação do produto e comparar com a
concorrência), psicológica (conhecer o potencial comprador para melhor se
comunicar com ele, afora questão de preço) e social (conhecer as circunstâncias
especiais de ordem social que afetariam os outros dois fatores).
O quinto
capítulo trata de clusters
empresariais antes de o termo existir, ou, nas palavras de Pessoa, “a
conversão de pequena indústria em grande indústria pelo processo de
agrupamento”. O texto é um projeto de concentração industrial idealizado por
Pessoa para um empreendimento seu que acabou por não vingar. Na minha opinião,
esse é um dos capítulo menos interessantes do livro (perdendo para o décimo).
“Pós-fordismo” é o sexto capítulo que trata do conceito de
organização. Pessoa explica o conceito de organização, vindo de “organismo” no
sentido biológico, com a diferenciação de órgãos que cumprem a sua função
especializada com o ideal sendo que um órgão seja tão especializado que não
possa substituir outro. Os órgãos funcionam em conjunto, cada um cumprindo o
seu papel para o objetivo, que é a manutenção e defesa do conjunto (do
organismo). Organizar seria fazer com que algo se pareça com um organismo, com
a diferença de um organismo artificial ser remodelável, ter suas partes mais
facilmente substituíveis. A organização seria então uma entidade viva,
delineada em linhas gerais do topo e tendo seus contornos preenchidos “com os
acidentes e as contingências da realidade da vida”, resultando em uma entidade
complexa e maleável.
“Governança Corporativa” é o tema do sétimo capítulo, tomando como
ponto de partida uma fraude ocorrida em um banco, que deveria estar sendo
monitorado pelo conselho fiscal e pelos
“comissários do governo” (em empresas estatais, me parece). Essa é uma
situação parecida com fraudes recentes no Brasil e alhures, onde os conselhos
de administração e o conselho fiscal falham em detectar a fraude,
principalmente de natureza contábil, antes que seja tarde demais, seja por
falta de querer fiscalizar, seja por incompetência, sem falar nas amizades
entre gerência e aqueles que deveriam fiscalizá-la, de forma que a fiscalização
é feita por um “amigo incompetente”. Os comissários do governo, por sua vez,
são “nomeados para não fazer nada, e é efetivamente o que fazem” escolhidos por
“obscuros lances de xadrez partidário”. A solução sugerida por Pessoa são as
auditorias independentes, que, infelizmente, também não resolvem de maneira
totalmente satisfatória o problema de monitoramento.
Branding é tema do oitavo capítulo e o texto de pessoa
fala nos tipos de preceitos: os de ordem moral (o que devemos fazer para ficar
bem com nossas consciências), de ordem racional (o que devemos fazer para
ficarmos de bem com nossa vida) e os práticos (o que devemos fazer para
ficarmos bem com nossa ambição). O foco do texto é nesse último, que podem ser
morais ou não, sensatos ou insensatos. O artigo de Pessoa termina analisando os
preceitos práticos de Henry Ford e a conexão de Franco com o branding é feita associando o
enunciamento de preceitos práticos com a construção de uma identidade de marca.
Padrões
industriais como o dos teclados (padrão QWERTY)
são temas do nono capítulo. Alguns padrões como o de teclados, não obstante
terem falhas que poderiam ser corrigidas, são amplamente adotados pelos
usuários, assim como o calendário gregoriano, tema do artigo do poeta. Não cabe
aqui resumir quais as propostas, só que elas poderiam mudar radicalmente o
calendário e afetar o modo como as pessoas vivem (que tal um ano de 13 meses,
28 dias cada, um dia “fora da semana” e dias da semana fixos?). De forma
parecida, mudar o teclado atual, mesmo que para um padrão mais intuitivo,
afetaria radicalmente os usuários que teriam que reaprender a utilizar o
teclado.
“E-mail” é o título do décimo capítulo e
o texto de Pessoa é sobre a organização de arquivos. A relação que Franco faz
entre este texto e organização de mensagens eletrônicas é interessante, mas sua
observação de que o texto não despertaria interesse se não fosse de Pessoa é
imprecisa: o texto continua desinteressante mesmo o autor sendo quem é, tanto que
confesso nem ter lido inteiro.
O último
artigo de Pessoa antes de sua “entrevista” tem como tema dado por Franco o blog
e trata-se de uma coletânea de pequenos textos publicados na Revista de
Comércio e Contabilidade, reunidos de uma forma parecida com a de um blog. O
principal tema desses textos curtos é dicas para escrever boas cartas
comerciais, que era a profissão de Pessoa (poesia sendo sua vocação, não
profissão), mas ele escreve sobre diversos temas como o comércio, elementos da
vitória (saber trabalhar, oportunidade e criação de relações) e também sobre o
propósito da revista. É um capítulo bem interessante.
Por fim, o
livro termina com a “entrevista” de Fernando Pessoa, um “Ctrl + C, Ctrl + V”
feito por João Alves das Neves para responder perguntas formuladas na fictícia
entrevista. Grande parte (se não a totalidade) das respostas de Pessoa já estão
nos textos anteriores, mas ainda assim é uma leitura interessante,
especialmente se houver alguma distância entre os 11 capítulos anteriores e o
último.
Para quem não
conhecia esse lado de Pessoa (como eu) e é um defensor da liberdade econômica e
contra os “teoristas de sociedades impossíveis” (como eu), vai gostar muito
desse livro. Os textos também são muito bem escritos e com raciocínios organizados
e competentemente construídos, e Franco faz um trabalho muito bom na
organização do livro e sai-se como um bom crítico literário.
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