quarta-feira, 13 de junho de 2012

Economia em Pessoa


Há diversas abordagens para transmitir teoria econômica para um público mais amplo. Duas formas bastante comuns é simplificar à lá Freakonomics (e Lucro Sujo, resenhado aqui e aqui) ou relacionar com grandes escritores. Quatro livros lançados no Brasil (brasileiros ou tradução de edições estrangeiras) com participação de Gustavo Franco são: Economia em Pessoa, Shakespeare e a Economia, Dinheiro e Magia e a Economia em Machado de Assis. Como hoje é o aniversário de 124 anos de Fernando Pessoa, vou resenhar o livro sobre o poeta português.

O livro é uma série de 11 artigos (mais uma “entrevista” com o poeta) escritos por Fernando Pessoa ele mesmo (ou seja, sem utilizar um heterônimo) em sua maioria para a Revista de Comércio e Contabilidade, valendo-se da experiência dele em trabalho de escritório e empreendedor, já que ele não vivia (ou “subsistia”) apenas de sua poesia, assim como outros escritores hoje de renome. O que muitos biógrafos fazem notar é que não havia nenhum aspecto de “martírio” nessas atividades de “vida prática” de Pessoa e havia sim até um interesse lúdico pela atividade comercial. Apesar de escrever os artigos com o ortônimo, não se deve pensar que o “verdadeiro” Pessoa escreve esses artigos, porque, como dizem os especialistas em sua obra (categoria na qual não me incluo), não há tal coisa como um “verdadeiro” Pessoa. E tampouco podem ser categorizados como “fingidos” os textos, que não deixam de expressar opiniões sinceras e genuínas do poeta.

Gustavo Franco além de escrever a introdução do livro contribuiu com introduções para cada capítulo e, mais importante, nomeando cada um com um termo que não existia na época de Pessoa para ressaltar a sua atualidade. O primeiro capítulo, por exemplo, foi intitulado “Privatização” e trata de um artigo sobre o monopólio da extração de tabaco concedido a uma empresa privada. Nesse artigo, Pessoa discute três tipos de organização empresarial, a administração estatal, o monopólio privado ou o sistema de livre concorrência. Logo no começo, ele é categórico sobre o primeiro dos tipos: “a administração do Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis para qualquer das três entidades [Estado, comércio & indústria e consumidores] com que essa administração implica: de todas as coisas ”organizadas”, é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas”. Pessoa argumenta que o Estado corre o risco de arruinar a vida social espontânea ao invés de contribuir para seu melhor funcionamento, incluindo o funcionamento de setores econômicos importantes. Adicione-se a isso o tipo de trabalhador típico do serviço público (segundo Pessoa, incompetentes e desleixados). O governo prejudica a indústria com sua má administração e dessa forma prejudica a si mesmo, assim como o consumidor, mesmo quando a empresa é administrada para ser deficitária e “beneficiar” o consumidor (que também é pagador de impostos). Essa situação não muda se o estado conceder monopólio para uma empresa privada, que continuará a apresentar os mesmos problemas de falta de concorrência e de incentivos presentes na administração estatal, além de sua “artificialidade econômica”. A liberdade econômica, por sua vez, é natural, estimula a proficiência técnica e tendem a manter os preços e seu mínimo, porém, leva a um sistema instável e descoordenado. Embora alegue ter tentado ser o mais imparcial possível, a argumentação de Pessoa parece ser mais favorável ao regime de liberdade, apesar dos argumentos desfavoráveis, que na minha opinião são pouco convincentes, exceto talvez no que se refere à formação de monopólio e a sindicalização por conta da descoordenação e da instabilidade.

O segundo capítulo é intitulado “Globalização” ou “A evolução do comércio” pelas palavras de Pessoa, que classifica junto com a cultura como os traços distintivos das sociedades civilizadas, havendo relação de paralelismo e de causa e efeito entre esses dois fatores. Segundo Pessoa, “é no comércio que as relações materiais entre as sociedades atingem o seu máximo” e “é na cultura que as relações mentais entre os povos conseguem o seu auge”, de forma que uma sociedade com alto desenvolvimento material e mental será paralelamente altamente comercial e altamente cultural. A relação de causa e efeito se dá na medida em que a cultura precisa se abrir para o que lhe é alheio, ou seja, a novas culturas, e “tende para a universalidade”. E para se formarem contatos mentais, o meio mais seguro é formar contatos materiais por meio do comércio entre os povos (ou seja, globalização), contato pacífico e de longo prazo.

Em seguida, Pessoa trata da desregulamentação no capítulo três, escrevendo sobre as legislações que, já naquele tempo, atentavam contra as liberdades individuais, gerando problemas políticos, sociais e comerciais, este último sendo o foco do artigo. Pessoa analisa cinco legislações restritivas: 1) Legislações mercantilistas contra importações para não afetar o câmbio; 2) Proibição de produtos “de primeira necessidade”; 3) Tutela estatal sob o consumo, proibindo-se a venda de produtos “nocivos”, típico do “estado-babá”; 4) legislações que supostamente protegeriam os trabalhadores; 5) Legislação para proteger os industriais. O autor mostra como essas legislações prejudicam o comércio, causam distorções e ineficiência na economia e acabam por se voltar contra aqueles que deveriam beneficiar.

O marketing é o tema do quarto capítulo. É interessante a caracterização do comerciante como “servidor público” ou “de um público”, sempre preocupado em agradar a quem serve a fim de obter a sua recompensa (o lucro). Para melhor servir o consumidor, o comerciante deve estudá-lo a fim de saber como pensam e para pensar como eles, que é justamente o que se faz em Marketing, saindo-se do uso dessa palavra apenas para referir-se à publicidade de produtos. O estudo, segundo Pessoa, deve ser de três ordens: econômica (conhecer a aceitação do produto e comparar com a concorrência), psicológica (conhecer o potencial comprador para melhor se comunicar com ele, afora questão de preço) e social (conhecer as circunstâncias especiais de ordem social que afetariam os outros dois fatores).

O quinto capítulo trata de clusters empresariais antes de o termo existir, ou, nas palavras de Pessoa, “a conversão de pequena indústria em grande indústria pelo processo de agrupamento”. O texto é um projeto de concentração industrial idealizado por Pessoa para um empreendimento seu que acabou por não vingar. Na minha opinião, esse é um dos capítulo menos interessantes do livro (perdendo para o décimo).

“Pós-fordismo” é o sexto capítulo que trata do conceito de organização. Pessoa explica o conceito de organização, vindo de “organismo” no sentido biológico, com a diferenciação de órgãos que cumprem a sua função especializada com o ideal sendo que um órgão seja tão especializado que não possa substituir outro. Os órgãos funcionam em conjunto, cada um cumprindo o seu papel para o objetivo, que é a manutenção e defesa do conjunto (do organismo). Organizar seria fazer com que algo se pareça com um organismo, com a diferença de um organismo artificial ser remodelável, ter suas partes mais facilmente substituíveis. A organização seria então uma entidade viva, delineada em linhas gerais do topo e tendo seus contornos preenchidos “com os acidentes e as contingências da realidade da vida”, resultando em uma entidade complexa e maleável.

“Governança Corporativa” é o tema do sétimo capítulo, tomando como ponto de partida uma fraude ocorrida em um banco, que deveria estar sendo monitorado pelo conselho fiscal e pelos  “comissários do governo” (em empresas estatais, me parece). Essa é uma situação parecida com fraudes recentes no Brasil e alhures, onde os conselhos de administração e o conselho fiscal falham em detectar a fraude, principalmente de natureza contábil, antes que seja tarde demais, seja por falta de querer fiscalizar, seja por incompetência, sem falar nas amizades entre gerência e aqueles que deveriam fiscalizá-la, de forma que a fiscalização é feita por um “amigo incompetente”. Os comissários do governo, por sua vez, são “nomeados para não fazer nada, e é efetivamente o que fazem” escolhidos por “obscuros lances de xadrez partidário”. A solução sugerida por Pessoa são as auditorias independentes, que, infelizmente, também não resolvem de maneira totalmente satisfatória o problema de monitoramento.

Branding é tema do oitavo capítulo e o texto de pessoa fala nos tipos de preceitos: os de ordem moral (o que devemos fazer para ficar bem com nossas consciências), de ordem racional (o que devemos fazer para ficarmos de bem com nossa vida) e os práticos (o que devemos fazer para ficarmos bem com nossa ambição). O foco do texto é nesse último, que podem ser morais ou não, sensatos ou insensatos. O artigo de Pessoa termina analisando os preceitos práticos de Henry Ford e a conexão de Franco com o branding é feita associando o enunciamento de preceitos práticos com a construção de uma identidade de marca.

Padrões industriais como o dos teclados (padrão QWERTY) são temas do nono capítulo. Alguns padrões como o de teclados, não obstante terem falhas que poderiam ser corrigidas, são amplamente adotados pelos usuários, assim como o calendário gregoriano, tema do artigo do poeta. Não cabe aqui resumir quais as propostas, só que elas poderiam mudar radicalmente o calendário e afetar o modo como as pessoas vivem (que tal um ano de 13 meses, 28 dias cada, um dia “fora da semana” e dias da semana fixos?). De forma parecida, mudar o teclado atual, mesmo que para um padrão mais intuitivo, afetaria radicalmente os usuários que teriam que reaprender a utilizar o teclado.

E-mail” é o título do décimo capítulo e o texto de Pessoa é sobre a organização de arquivos. A relação que Franco faz entre este texto e organização de mensagens eletrônicas é interessante, mas sua observação de que o texto não despertaria interesse se não fosse de Pessoa é imprecisa: o texto continua desinteressante mesmo o autor sendo quem é, tanto que confesso nem ter lido inteiro.

O último artigo de Pessoa antes de sua “entrevista” tem como tema dado por Franco o blog e trata-se de uma coletânea de pequenos textos publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, reunidos de uma forma parecida com a de um blog. O principal tema desses textos curtos é dicas para escrever boas cartas comerciais, que era a profissão de Pessoa (poesia sendo sua vocação, não profissão), mas ele escreve sobre diversos temas como o comércio, elementos da vitória (saber trabalhar, oportunidade e criação de relações) e também sobre o propósito da revista. É um capítulo bem interessante.

Por fim, o livro termina com a “entrevista” de Fernando Pessoa, um “Ctrl + C, Ctrl + V” feito por João Alves das Neves para responder perguntas formuladas na fictícia entrevista. Grande parte (se não a totalidade) das respostas de Pessoa já estão nos textos anteriores, mas ainda assim é uma leitura interessante, especialmente se houver alguma distância entre os 11 capítulos anteriores e o último.

Para quem não conhecia esse lado de Pessoa (como eu) e é um defensor da liberdade econômica e contra os “teoristas de sociedades impossíveis” (como eu), vai gostar muito desse livro. Os textos também são muito bem escritos e com raciocínios organizados e competentemente construídos, e Franco faz um trabalho muito bom na organização do livro e sai-se como um bom crítico literário.

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