Hans Christoph Binswanger
Já escrevi uma resenha sobre o livro Economia
em Pessoa, que mostra as relações entre um grande nome da Literatura com
Economia. Outro livro dessa série informal, Dinheiro
e Magia, é sobre Goethe e seu Fausto.
O livro procura traçar um paralelo entre o Fausto e temas econômicos,
principalmente no que se refere ao dinheiro/à moeda. No prefácio à edição
brasileira, Gustavo Franco faz um resumo do Fausto
de Goethe e das origens do mito em torno da figura de Fausto, contando um pouco
mais sobre as outras versões da obra. O prefácio não acrescenta muito ao tema
principal do livro, mas é útil para que o leitor se familiarize com o enredo do
Fausto e alguns dos temas tratados na obra.
Já na parte de Binswanger, o primeiro capítulo
mostra a relação entre alquimia e economia no Fausto na medida em que tanto em um quanto no outro, há a busca
pelo “ouro artificial”. Binswanger afirma que “todo aquele que não consegue
compreender essa alquimia, a mensagem que Fausto
transmite, não pode entender a dimensão colossal da economia moderna”. Verdade
ou não, vamos procurar entender isso então.
Como Franco mencionou no prefácio, há um “Fausto
histórico”, uma pessoa (doutor Fausto, em Freiburg, Alemanha) que diziam ser
necromante e alquimista. Após estabelecer esse fato, Binswanger passa a
explicar o que vem a ser a alquimia. O objetivo dos alquimistas era transformar
metal comum em precioso (ouro), o chumbo sendo o preferido para tal finalidade.
O chumbo está associado a Saturno/Cronos, deus do tempo. Logo, a transformação
alquímica seria a conversão de um metal inferior associado à transitoriedade em
metal precioso e símbolo do eterno. Na visão dos alquimistas, o ouro já está
contido no chumbo e o trabalho do alquimista seria apenas o de “fazer crescer”
o ouro no chumbo juntando os quatro elementos presentes no metal com a quinta-essência,
a pedra filosofal. O processo seria a tentativa do homem de escapar do tempo
enquanto ainda está nele, tentativa de triunfar sobre o tempo e conquistar o
absoluto. Aquilo que demoraria eras para surgir poderia ser conseguido muito
mais rapidamente graças à alquimia. O ouro por sua vez tem duas simbologias: a
primeira seria o de ouro espiritual, sua busca sendo o caminho para a
felicidade perpétua; no sentido material, o ouro também seria eterno por suas
características físicas (confesso não saber até que ponto isso é verdadeiro) e
seria utilizado tanto para a busca da juventude eterna e vida longa quanto para
uso como dinheiro.
Essas duas metas do sentido material do ouro são os
temas da parte 1 e da parte 2 do Fausto. Na primeira parte, há o
rejuvenescimento e virilidade através da poção áurea, enquanto que na segunda
parte há a criação de ouro artificial no sentido de dinheiro e da criação do
papel-moeda.
Ao invés de ser um pacto, o que o Fausto na versão
de Goethe faz é uma aposta com Mefistófeles. O demônio aposta que conseguirá
chegar a um momento de tamanho prazer que desejará eternizá-lo. A primeira
tentativa no Fausto 1 (o amor)
fracassa, mas na parte 2 Fausto perde a sua aposta com a possibilidade de
realizar o progresso econômico/tecnológico através do ouro artificial.
Hoje em dia, a alquimia como transformação de
chumbo em ouro está abandonada, mas é notável o paralelismo entre transformar
pedaços de papel pintados em algo extremamente valioso, ou seja, criar o
papel-moeda a partir do nada (transformar substância sem valor em algo dotado
de valor). O crescimento econômico vem do “esforço” humano, vem do trabalho,
poupança (abstenção de consumo) e do progresso tecnológico (resultado de estudo
e pesquisa). A “alquimia econômica” procura um método de eliminar o “esforço” e
ter um “crescimento contínuo na produção sem aumento correspondente do esforço
despendido” através da “magia”.
O processo de criação de ouro envolve a junção do
mercúrio filosofal e do enxofre filosofal, elementos associados respectivamente
com água e fogo. O primeiro estágio no processo econômico, a criação de moeda,
literalmente cria “liquidez” e são facilmente colocadas em circulação, sendo
mais fáceis de manipular e de produzir do que moedas. Papel-moeda por si só não
representa riqueza, sendo necessário um segundo elemento obtido na parte
seguinte do processo, o enxofre filosofal sendo o patrimônio no sentido de “dominum” “a norma de propriedade da lei
romana, que assegura ao proprietário o direito de tratar sua propriedade como
bem entender”. Isso representa um passo para a materialização do papel-moeda em
riqueza, ou a alquímica solidificação pelo enxofre sobre o mercúrio líquido. O
processo alquímico é finalizado com o sal filosofal na forma de capital real
utilizado na produção junção dos dois elementos anteriores. O deus Mercúrio era
associado a diversas atividades, incluindo alquimia e comércio, e o mercúrio
passa a representar o comércio; o enxofre, associado ao fogo, é a energia; e o
sal é o que completa o ciclo ao solidificar o papel-moeda e a propriedade em
ativos reais.
O resultado é a obra máxima de extrair valor do que
só tem valor em potencial, como extrair ouro de um material que supostamente
possuía o ouro em potencial. A tese do autor é a de que o Fausto de Goethe mostra
outros fatores além do “esforço humano” (trabalho, poupança, estudo e pesquisa)
atuando na economia, de acordo com a “magia” no paralelismo com os elementos
alquímicos: papel-moeda, legitimação dessa moeda, paixões humanas relacionadas
com a propriedade, multiplicação de velocidade e expansão das forças de
produção pela energia não humana. A junção de todos esses elementos permite a
manipulação da natureza e a criação de valor a partir do que não tinha valor em
si mesmo. Emissão de moeda é necessária nesse processo (atuando em seu começo),
mas, para que não redunde em inflação de preços, a moeda deve ser posta em
circulação por meio de valores reais gerados na indústria e no comércio. Aos
elementos do crescimento econômico mencionados anteriormente, acrescente-se o
processo “alquímico” de transformação da natureza e destas em dinheiro. O
resultado do processo alquímico-econômico é a “obra máxima”, o crescimento
econômico, a criação de riqueza a partir do que não tinha valor monetário por
uma junção de esforço humano e “magia”. O que Goethe descreve é a expansão
econômica ocasionada pela Revolução Industrial, que de fato poderia ser
denominada de “mágica” pois operou de maneira como nunca antes, embora hoje não
haja nada de sobrenatural nesse processo. No final do Fausto, a personagem não
encontra a felicidade no amor (na primeira parte), e sim na execução de seus
atos econômicos como empreendedor.
Apesar do lado positivo do crescimento econômico, o
autor nota três desconfortos do progresso conforme expressos no Fausto: a
destruição da beleza, os perigos da tecnologia e a apreensão com as incertezas
inerentes ao futuro. Como Binswanger nota e Franco analisaria no posfácio, o
desenvolvimento econômico, a inovação e o progresso tecnológico, são de
natureza ambivalente, com aspectos positivos e negativos. A própria emissão de
papel-moeda sem lastro em ouro é uma dessas inovações ambivalentes, servindo
como “processo alquímico”, mas que pode resultar em inflação ou hiperinflação
com todas as suas consequências econômicas negativas, ponto que Binswanger deixa
de enfatizar, mas que Franco retoma no posfácio.
A segunda parte do livro tem como tema a conquista
do tempo. Na primeira parte, já foi mencionado o objetivo da alquimia de vencer
a transitoriedade. No Fausto, o domínio do tempo se dá de três possíveis modos:
pelo caminho da ciência, da arte ou da economia. O primeiro, representado na
obra pela criação do Homúnculo, remete ao passado e a busca por declarações
atemporais e normas eternas, recuando em busca da “causa da causa” até a fonte
primordial de tudo. O caminho da arte é descrito na invocação de Helena de
Troia, que na obra representa a arte e a beleza (objeto de busca na arte),
ambas não envelhecendo e pairando acima do tempo, podendo ser trazida ao
presente pela percepção do amante da arte. Tanto o Homúnculo quanto Helena
representam também um ato alquímico de criação a partir do nada, arte e ciência
seguindo semelhante processo. A pedra filosofal da ciência é a norma
cientificamente verdadeira e válida para sempre, a da arte é a forma que cria
imagens a partir da experiência e que pode ser evocada a qualquer momento e a
da economia, como visto, é o capital-dinheiro por meio do qual o material pode
ser transformado em dinheiro; o dinheiro é atemporal porque não é usado, mas
não consumido. O foco da economia é o futuro e se funde com a ciência, mas desloca
a arte. Como se sabe hoje, o valor dos projetos e dos empreendimentos vêm da
antecipação dos ganhos futuros e são representados por valores no presente. A
economia triunfa sobre o tempo, mas apenas temporariamente e a vitória tendo
que ser renovada continuamente. “O dinheiro é (...) uma ordem para o futuro”,
sendo possível consumir o futuro no presente ou ganhar dinheiro no presente
através do futuro. A cada momento o futuro é perdido na economia e é necessária
a constante expansão – a obra máxima do processo alquímico-econômico. Bem ou
mal, a questão econômica deixou de ser a mera subsistência e passou a ser a
busca pela satisfação das necessidades humanas expansíveis incessantemente pela
fantasia humana e os modos de vida mais simples se tornam um obstáculo, como na
parte do Fausto que trata de Filemôn e Baucis.
Na última parte, Binswanger analisa a relação entre
as ideias e Goethe e os economistas da época. Começa ressaltando a autoridade
de Goethe em tratar do assunto por ter analisado a questão em seus escritos
filosóficos, por ter tido contato com diversos autores da época (como Adam
Smith) e por ter trabalhado na corte de Weimar com assuntos econômicos de
estado. Goethe defendia uma harmonização entre propriedade e posse comum, via
com simpatia o progresso tecnológico e grandes projetos (como do Canal do
Panamá), mas também estava atento para os perigos da tecnologia e, diferente de
outros pensadores, atribua ao papel-moeda uma importância central no
crescimento econômico, como visto no restante do livro.
No posfácio, Gustavo Franco expõe a sua visão sobre
o livro em três tópicos: a influência de enredos mitológicos como o de
Prometeus no Fausto; o papel-moeda e
seu impacto na economia; e o modelo “fáustico” de desenvolvimento. Muitas das
observações já estão incluídas em partes anteriores dessa resenha. O destaque
do posfácio fica para o final, onde Franco nota que no Brasil há o “homem
cordial” ao invés do “homem fáustico”.
Em suma, Dinheiro
e Magia é muito interessante e pode ser especialmente proveitoso para quem
já leu o Fausto, que também pode ser
melhor lido depois de conferir a obra de Binswanger. Não é uma leitura das mais
fáceis, mas vale a pena.
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