domingo, 28 de abril de 2019

Sem Cortes



Quando se fala em turnaround e reestruturação de empresas, o primeiro nome que vêm a cabeça da maioria das pessoas é o de Claudio Galeazzi. No livro "Sem Cortes", Galeazzi conta a sua trajetória pessoal-profissional.


O livro começa literalmente do início, contando a história de Galeazzi desde a infância e a adolescência, quando já demonstrava uma característica que o acompanharia por toda a vida e seria marcante para a sua carreira: insatisfação com a rotina e com a estabilidade. O livro segue a ordem cronológica relatando os principais trabalhos da carreira de Galeazzi, mas em alguns momentos se desvia da linha do tempo e faz comentários sobre a sua experiência (ou quase experiência) com a administração pública, sobre a bolha pontocom e a crise de 2008. No final do capítulo da Vulcabrás, há uma crítica ao BNDES, que negou empréstimo para a empresa, mas nunca mostrou o mesmo critério com outras empresas. "Por que será?", se pergunta Galeazzi (palavras minhas, mas esse é o espírito).

O livro é um misto de biografia e livro de negócios, mas é rico em ensinamentos de administração de empresas, mesmo para empresas que não estejam em dificuldades financeiras. Porém, o foco é em turnaround e as empresas analisadas possuem várias características em comum: apego ao passado, preocupação excessiva ao crescimento em detrimento da rentabilidade, criação de feudos, resistência a mudanças, estruturas inchadas e por ai vai. Apesar de muitas das soluções se repetirem em diversos casos, o livro não se torna monótono já que sempre há ensinamentos novos. É também uma história bem contada mostrando a visão de Galeazzi sobre alguns personagens do meio empresarial brasileiro como Jorge Paulo Lemann, Abílio Diniz e André Esteves, entre outros. O capítulo inicial é bem interessante ao contar a história da Armaq, empresa do próprio Galeazzi que entrou em concordata em uma experiência que o ensinou muito em termos pessoais e profissionais e se mostrou um MBA em turnaround, segundo suas próprias palavras.

Não vou passar por todos os ensinamentos que o livro pode passar, apenas pelos pontos que mais chamaram a minha atenção. O primeiro é sobre o "insubstituível", aquela pessoa que sabe tudo sobre como funciona a empresa e praticamente tem a "chave da empresa". Esse é, na visão de Galeazzi, o primeiro que deve ser demitido, já que será o mais resistente às mudanças. Nem sempre é o caso e há um segundo "personagem" que foi mencionado no livro como "Asdrúbal", nome fictício, não sei se relacionado com a figura histórica. O Asdrúbal é aquele que tem um ótimo relacionamento tanto com o reestruturador quanto com o dono da empresa e pode ajudar muito a reduzir as resistências internas.

Outro conceito interessante, e de criação do próprio Galeazzi, é o de "gap híbrido", uma situação em que há uma transição entre o velho e o novo, onde o velho, que já não serve mais à empresa, anda não foi superado, porém, o novo ainda não está totalmente implementado. É um momento tenso, já que a preferência de Galeazzi é por mudanças rápidas quando até figuras como Lemann prefeririam uma transição mais gradual. Nos dois casos em que isso é mencionado, o da Lojas Americanas funcionou bem, mas na BRF a transição não foi das mais suaves, embora tenha funcionado no final.

Apesar de ser conhecido como "Mãos de Tesoura" por sempre promover cortes drásticos no quadro de funcionários, Galeazzi também fala sobre a necessidade de conseguir o apoio dos trabalhadores no processo de reestruturação, promovendo e treinando as pessoas certas. É necessário também ouvir os funcionários de todos os níveis hierárquicos, já que a solução para os problemas operacionais pode já ser conhecido por um gerente ou por um trabalhador de chão de fábrica. Essas soluções nunca são implementadas justamente porque ninguém antes ouviu essas pessoas. No bootcamp Turnarounders, um dos relatos foi justamente nessa direção, uma pessoa com um plano completo para resolver os problemas da empresa, engavetado por anos porque ninguém perguntou a opinião do profissional.  

Outro ponto importante é que os donos das empresas acabam deixando muito o emocional falar mais alto do que o racional. Isso se mostra na relutância em vender ativos e demitir pessoas. Também se mostra na preocupação excessiva em crescer as vendas, abrir novas lojas/unidades ou expandir para outros mercados em detrimento da rentabilidade porque vendas mais altas fazem bem ao ego do empresário. De forma relacionada, muitas empresas são muito orientadas para a produção e menos orientadas para o mercado. Parece meio irracional, mas a ideia é que a empresa primeiro se preocupa em produzir mais ao menor custo possível e depois pensa em vender. Porém, se o mercado não está tão interessado no produto, o resultado será acúmulo de estoque ou venda a preços muito baixos para desovar o estoque, reduzindo as margens. Em casos extremos, a margem é negativa, sem falar na geração baixa ou mesmo negativa de caixa.

Apesar de os problemas da empresa se manifestarem em dificuldades financeiras em pagar as dívidas e gerar caixa, o problema nunca é apenas financeiro. Se fosse, a solução seria bastante simples, basta colocar mais dinheiro na empresa. Porém, se os problemas mais graves não forem endereçados, isso seria apenas jogar dinheiro bom em dinheiro ruim. Os problemas reais são produtos que não atendem ao mercado, falta de foco, custos e despesas elevados pelos mais diversos motivos e por ai em diante. Em empresas familiares, os gastos com a família, incluindo mordomias, são um dos principais buracos negros de dinheiro dentro da empresa. A administração também se mostra ineficiente quando os gestores se preocupam com micro aspectos operacionais e abandonam uma visão mais geral dos resultados. A falta de alinhamento entre as diversas partes da empresa também é uma fonte de ineficiência, na medida em que cada um passa a se preocupar apenas com a sua parte e deixa de lado a empresa. Isso leva à criação de feudos e despesas em duplicidade. De forma mais resumida, o erro é se preocupar demais com o negócio em detrimento de se preocupar com a empresa.

Uma ideia importante que se aplica em diversos contextos é nunca emparedar o seu interlocutor em uma negociação. Se a outra pessoa passar a pensar que não tem mais nada a perder, pode se tornar imprevisível e irracional. O seminário do Instituto Fernand Braudel traz uma explicação de como isso se aplica em Recuperação Judicial. Quando uma empresa está em seu "curso normal", o risco maior é do acionista, o único que não tem seus retornos garantidos contratualmente. Porém, quando a empresa entra em Recuperação Judicial, o risco passa para os credores da empresa, já que o acionista não tem mais nada a perder. No trabalho com a Mococa, Galeazzi fala da "estratégia das duas pastas", a primeira com um plano de reestruturação da empresa e a segunda com a Concordata/Recuperação Judicial, o segundo caso sendo muito pior para os credores. A fama de Galeazzi se tornaria tão grande que os negociadores passariam a temer tê-lo na mesa de negociações justamente com medo de Galeazzi sugerir a RJ.

Em termos de postura e habilidades profissionais Galeazzi diz que é necessário se sentir confortável com o desconforto, uma característica pessoal marcante em Galeazzi. O processo de turnaround é altamente caótico, então o profissional precisa saber lidar com essa situação e não pode esperar por estabilidade, que não virá até o final do processo. O profissional também deveria deixar de lado o seu ego e apostar em uma atitude humilde de estar sempre disposto a aprender, a reconhecer as suas limitações e a ouvir mais do que falar. Por outro lado, precisa ter firmeza em suas decisões e buscar o máximo de autonomia. Inicialmente, precisa de uma certa dose de autoritarismo para poder quebrar as resistências, mas precisará da cooperação dos outros para implementar o plano de reestruturação.

Para quem investe em ações, o livro se mostra ainda mais valioso já que analisa os trabalhos de Galeazzi em empresas de capital aberto: Coteminas, Lojas Americanas, Vulcabrás e BTG. Tirando o BTG, os trabalhos de Galeazzi ocorram há muito tempo, mas é possível aprender bastante com essa visão interna, que ainda se reflete nas empresas hoje em dia.

Em resumo, é um ótimo livro sobre administração de empresas e reestruturação de empresas, passando diversos ensinamentos ao mesmo tempo em que conta uma história bem interessante.