Duas notícias publicadas exatamente no mesmo dia
ilustram casos de empresas com problemas de capital de giro, por motivos
diferentes: Supermercado
Futurama e Brasil
Pharma.
Capital de giro raramente é um problema sério para
empresas de capital aberto (pelo menos da perspectiva de fora da empresa),
embora seja apontado como uma das principais causas de mortalidade de pequenas
e médias empresas pelo Sebrae.
Em aulas de análise de demonstrações financeiras fala-se bastante em
indicadores de liquidez e de capital de giro, mas a verdade é que esses
indicadores não são muito utilizados ao menos para se analisar empresas de
capital aberto. Claro que capital de giro é um tema importante nesse tipo de
análise já que se trata de um
investimento que a empresa precisa fazer, mas o foco da análise é menos
verificar se a liquidez circulante ou geral é adequada e sim o quanto de caixa
se torna indisponível e o impacto nos fluxos de caixa futuros.
O primeiro caso a ser comentado aqui, Brasil
Pharma, é parcialmente uma exceção ao mencionado no parágrafo acima. A companhia
desde 2016 já mencionava que a falta de capital de giro, principalmente
estoque, estava prejudicando as suas operações. De fato, as vendas nas mesmas
lojas (Same Store Sales – SSS) tinham
crescido 2,1% em 2015, em 2016 registraram queda de 37,1% e 57,2% em 2017. O
capital de giro em dias era positivo e girava em torno de 40 dias em 2013 e
2014. Já em 2015 tinha caído para 23 dias e a partir do segundo trimestre de
2016 caiu para o campo negativo para nunca mais voltar a ser positivo. Basicamente,
o estoque estava baixo e as contas a pagar com fornecedores foram se
acumulando, resultando em queda de vendas. No terceiro trimestre de 2016, a
Brasil Pharma comentou no release de
resultados (pela primeira vez) que a companhia seguia com restrição de caixa, que
prejudicava a sua posição de estoque, “gerando ruptura e queda de vendas”.
Em valores monetários (em R$ mil), é essa a
situação da companhia nos últimos anos:
A razão para esse desempenho é má gestão. A Brasil Pharma
nasceu para ser uma consolidadora de farmácias e cresceu rapidamente através de
aquisições. Mas o que se viu foi uma grande dificuldade de integrar as
operações que atuam em diferentes regiões do país e que não eram empresas.
Antes da derrocada, a Brasil Pharma já vinha apresentando dificuldades com
prejuízos operacionais e forte queima de caixa. No primeiro trimestre de 2014,
a empresa saiu de uma posição de caixa de R$ 406 milhões para R$ 98 milhões e o
saldo de caixa só se reduziria no futuro. Nesse trimestre, a empresa teve um
prejuízo líquido de R$ 196 milhões e reduziu a conta de fornecedores em R$ 117
milhões, o que explicaria a variação no caixa. Do último trimestre de 2013 em
diante, a empresa passou a ter prejuízos operacionais que ajudavam a queimar o
caixa e as restrições de capital de giro que começariam a afetar a empresa de
maneira mais grave eram apenas questão de tempo. Logo, uma combinação de custos
e despesas elevados com dificuldades em lidar com o capital de giro são os
culpados pela situação da empresa que pediu recuperação judicial no começo de
2018.
A situação da Brasil Pharma é tão grave que
precisou captar em janeiro mais dívida em adição ao mais de R$ 1 bilhão de
dívida bruta que já tinha simplesmente para fechar lojas e pagar dívidas
trabalhistas relacionadas. Uma empresa que está com a mesma dificuldade é a Boa
Vista Energia, distribuidora de energia de Roraima, controlada pela Eletrobras,
que tenta privatizar essa e outras cinco distribuidoras. Questionada pela Aneel
sobre seu elevado custo operacional, a distribuidora alega que não tem dinheiro
para arcar com os custos rescisórios, afirmando ter pago no passado R$ 1,76
milhão para demitir apenas três funcionários (ver aqui).
Só para encerrar o caso da Brasil Pharma, o quão úteis
são os indicadores de liquidez? Embora apontem para a direção certa (sair de
capital de giro positivo para negativo é um grande sinal de alerta), outras
maneiras de analisar e projetar capital de giro também indicam os problemas que
a empresa poderia estar passando. Em geral, projeta-se capital de giro
calculando cada componente como uma proporção da receita ou do custo
baseando-se no histórico da empresa. Quando a empresa sai de seu padrão
histórico é motivo para prestar mais atenção no assunto. A situação da Brasil
Pharma poderia ser positiva, já que capital de giro negativo é uma situação que
gera valor SE a empresa conseguir suportar essa situação. O problema é que esse
é um grande “se” e nenhuma empresa sai de capital de giro positivo para
negativo impunemente.
O segundo caso, Supermercado Futurama, já conta com
problemas de outra natureza. A empresa está sendo acusada de sonegação e está
com as contas bloqueadas e penhoradas. Ao que parece pela notícia
divulgada no Valor, é menos um caso de incapacidade de pagamento e mais uma
tentativa de enganar a Receita Federal. O resultado é que a empresa
simplesmente não tem recursos para fazer a operação girar, o que se reflete em
especial no estoque. Como é possível ver na foto acima (tirada por mim mesmo em
uma das lojas do grupo), as gôndolas estão vazias porque a empresa não tem como
reabastecer as lojas. Tentei constatar fenômeno parecido com a Brasil Pharma,
mas fui a uma loja da Farmais (pertencente ao grupo) em São Paulo e ao menos
com essa loja parece que está tudo bem. Futurama não divulga seus números
contábeis básicos, mas deve estar enfrentando a mesma queda brutal de
faturamento que a Brasil Pharma enfrenta desde 2016.
Esse texto já estava quase pronto faz alguns dias,
mas estamos presenciando neste momento fenômeno parecido de forma bastante
disseminada com a greve dos caminhoneiros, que todo mundo deve estar
acompanhando. Para quem por algum motivo não está acompanhando ou para quem lê
este texto muito tempo depois de sua publicação, basicamente a alta no preço do
diesel disparou uma greve de caminhoneiros que se estendeu por dias e
interrompeu o abastecimento de diversos itens, de combustíveis a alimentos.
Isso afetou seriamente a vida econômica das pessoas, com dificuldade em
reabastecer o carro, redução nos estoques dos supermercados (pelo menos por
onde andei, não no nível do Futurama), falta de insumos médicos, interrupções
no transporte público, entre outras coisas que nós damos por garantido que vão
funcionar.
Então, para aproveitar o gancho que esses dias a
mais do texto estando parado me deu, capital de giro acaba não sendo tão
relevante para analisar uma empresa não porque não é importante (como os
exemplos aqui não me deixam mentir), e sim porque damos por garantido que vai
funcionar do jeito que deve funcionar e que outras questões operacionais e
financeiras requerem mais atenção por parte do analista porque afetam mais o
valor da empresa. Da mesma maneira, só damos valor para estradas livres para o
trânsito de mercadorias quando há interrupções como a que estamos presenciando
no momento.
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