segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

As dificuldades de analisar empresas de construção civil

Diferentes setores de atuação possuem suas particularidades que tornam mais fácil ou mais difícil de realizar uma avaliação do valor das empresas. Nesse sentido, construção civil é um setor especialmente desafiante.


Começa que incorporadoras possuem uma forma diferente de reconhecer receitas. Normalmente, as vendas se tornam receitas assim que são realizadas seguindo o regime de competência. Para empresas de construção civil, as receitas são apropriadas conforme a evolução financeira da obra seguindo o método Percentage of Completion (POC), de forma que a receita de um trimestre é uma combinação da apropriação de vendas realizadas em trimestres anteriores por conta do andamento das obras e o reconhecimento da receita das vendas realizadas do trimestre proporcional à porcentagem de conclusão.

Esse ponto costuma ser apontado como a grande peculiaridade do setor e, apesar de ser um conceito diferente do que vemos geralmente, não é tão difícil de assimilar. Projetar, por outro lado, já é uma dificuldade maior e entramos agora no ponto mais complexo desse tipo de empresa: o caráter multiperíodo de diversos de seus números econômico-financeiros. Para continuar o ponto anterior, o reconhecimento das receitas de vendas realizadas em um trimestre se prolonga por diversos períodos (exceto “estoque pronto” de imóveis já entregues) e de uma forma irregular. Para projetar a evolução da receita, é necessário estimar como será a evolução das obras. E para acrescentar mais uma dificuldade, as incorporadoras são um agregado de diferentes projetos, cada um com suas próprias características. Toda empresa pode ser entendida como um agregado de projetos, mas esse caráter é mais pronunciado nesse setor, na medida em que cada imóvel (e são vários, mesmo em incorporadoras pequenas) tem o seu próprio prazo de entrega, ritmo de obras, ritmo de vendas, margem bruta etc. O ideal ao se avaliar uma empresa é desagregar para projetar os números da empresa de uma maneira mais precisa e realista, mas infelizmente não é possível desagregar muito os números da empresa. Com isso, é inescapável ter que adotar um número médio para as várias métricas da empresa, que, no caso do reconhecimento de receitas, é o ritmo das obras, mesmo que haja grande variabilidade nessas métricas. Para incorporadoras, me parece que essas médias possuem maior variância do que médias empregadas ao se analisar outros tipos de empresas.

Outra dificuldade do caráter multiperíodo é o “Contas a Receber”. Geralmente, o capital de giro das empresas em um trimestre possui uma correlação forte com a receita líquida do trimestre, que é uma boa métrica da atividade da empresa. Para construção civil, essa relação se quebra na medida em que os valores a receber registrados não possuem relação com a atividade do trimestre vigente, e sim com os trimestres anteriores se estendendo a anos anteriores. Para piorar, as regras contábeis estabelecem que apenas os valores a receber das vendas já apropriadas como receita é que podem ser contabilizados, o restante do valor das vendas ficando fora do balanço. As empresas geralmente divulgam esses valores “off-balance”, seja em Nota Explicativa (NE), seja no release de resultado, mas esse é mais um fator que dificulta a análise.

O custo, naturalmente, segue uma lógica semelhante. O custo informado na Demonstração de Resultados do Exercício (DRE) é um agregado de três componentes: o custo dos imóveis prontos vendidos, a parcela do custo já incorrido dos imóveis vendidos no trimestre e o custo incorrido das unidades já vendidas anteriormente. Infelizmente, as empresas não diferenciam essas componentes nos releases de resultado e muito menos nas NEs. Porém, o que é necessário estimar para projetar os custos já foi feito ao se analisar a receita. Com a receita e com o custo, é possível calcular a margem bruta, mas, aqui, novamente temos complicações. Além da margem dos produtos variar bastante no tempo por diferentes fatores (situação da economia, perfil dos produtos e clientes etc.), há uma complicação gerada pelos encargos financeiros agregados ao custo. As empresas do setor podem contabilizar o custo da dívida relacionada com as obras no custo, razão pela qual o resultado financeiro dessas empresas parece ser tão bom. O ideal é remover esses encargos do custo para estabilizar um pouco a margem, não a tornando dependente de como as obras são financiadas, e também para facilitar a projeção das despesas financeiras. Isso não é tão difícil e as empresas geralmente facilitam a tarefa, mas é um fator adicional a complicar a vida de quem estuda o setor.

Um quarto componente do custo é o custo incorrido em unidades não-vendidas, que se configura no estoque para incorporadoras assim como para qualquer outra empresa. E a conta de estoque possui um misto dos problemas do caráter multiperíodo e da agregação e também não está relacionado com a atividade do período. O estoque é separado em “pronto” e “em construção”, o primeiro representando o custo dos imóveis já entregues e o segundo os imóveis que ainda estão com obras em andamento reunindo imóveis em diferentes estágios de construção. Há o conceito de “estoque a valor de mercado” que representa o Valor Geral de Vendas (VGV) dos imóveis em estoque, ou seja, o valor pelo qual a empresa espera vender os imóveis não vendidos. Em tese, você poderia facilmente calcular a margem bruta dos imóveis prontos, mas precisaria saber quanto precisamente ainda resta de custos a incorrer para calcular a margem dos imóveis em construção. Algumas empresas divulgam as suas estimativas dos custos a incorrer, tanto em unidades vendidas, quanto não vendidas, o que facilita a análise, porém, outros problemas tornarão essa tarefa complicada. Encargos financeiros é um fator problemático, na medida em que algumas empresas já agregam os encargos no valor do estoque ao invés de informá-los em separado e posteriormente indicar como alocá-los para as diferentes contas do estoque.

Outra parte do estoque é o estoque de terrenos. O caráter multiperíodo novamente se manifesta aqui, mas, ao invés de causar um retardo no registro dos valores, na verdade atua como um custo antecipado. O valor pago nos terrenos é incorporado ao custo dos imóveis e transformado em custo na DRE conforme as vendas se realizam, a parcela relativa às vendas não realizadas permanecendo no estoque de custos. E o problema da agregação se manifesta aqui também na medida em que diferentes terrenos possuem diferentes custos e também potenciais de gerar VGV. Sendo impossível estimar individualmente esses fatores, é necessário adotar uma média que minimize o erro de projeção, que ainda assim pode ser considerável. Para projetar o estoque de terrenos, o problema volta a ser olhar para frente. As empresas mantêm estoque de terrenos de forma a se prepararem para realizar lançamentos no futuro, então o nível do estoque está relacionado com uma variável futura, não passada. Mas como fazer essa estimativa? Mesmo fazendo uma análise retrospectiva usando os lançamentos “futuros” com relação a uma data anterior pode resultar em grandes erros, que podem se dar por conta desse cálculo ser inadequado ou simplesmente por uma mudança de planos das empresas. Ou seja, a empresa pode ter aumentado o estoque de terrenos com uma expectativa otimista de lançamentos, mas a situação do mercado pode ter mudado e forçado a empresa a realizar menos lançamentos. Dessa forma, estoque de terrenos é mais um pedaço complicado do quebra-cabeça das incorporadoras.

Por conta disso tudo, o caráter multiperíodo das empresas de construção e a sua agregação de projetos tão diferentes geram problemas na estimativa das receitas, custo, contas a receber e estoques. Seria possível citar outras contas que sofrem com esses mesmos problemas, mas, ao invés de somar, acho que seria uma boa hora para multiplicar os problemas. Todas essas questões são exacerbadas quando se considera que, conforme as regras contábeis, alguns projetos devem ser contabilizados como Investimentos e o restante consolidado a 100%, gerando as contas que eu particularmente considero as mais difíceis de trabalhar: Participações Societárias, e sua correspondente na DRE, Equivalência Patrimonial, e Participações Minoritárias, no Patrimônio Líquido, mas, principalmente, na DRE afetando o lucro líquido atribuído ao controlador.

As empresas geralmente divulgam seus números considerando consolidação 100% e também considerando apenas a participação da empresa, mas uma terceira possibilidade deveria ser criada supondo consolidando proporcional de tudo, inclusive dos projetos que a empresa não controla. Sem discutir o mérito do ponto de vista da Contabilidade, apenas na sua implicação prática para o usuário das informações contábeis, Participações Societárias e Equivalência Patrimonial infelizmente atuam como uma caixa preta. Dentro dessas contas, estão agregados Contas a Receber e Estoques na primeira, Receita e Custos na segunda. Sem saber os valores individuais, fica muito mais difícil trabalhar na projeção dessas contas considerando as vendas realizadas e o andamento das obras. Ou seja, temos que trabalhar com contas em diferentes formas de consolidação, 100% (ou proporcional, dependendo do que a empresa disponibiliza) para as vendas e “100%, exceto projetos sem controle” para o caso das demais contas que devemos projetar. Para ilustrar como isso é um problema, não podemos calcular a margem do estoque pronto, que em tese deveria consistir em dividir o lucro bruto (Estoque a Valor de Mercado – Estoque contábil) pelo estoque pronto a valor de mercado, mas que precisaria de um acréscimo para considerar o estoque dos projetos não controlados. Para piorar, a parcela off-balance do Contas a Receber não entra na Participação Societária.

Quanto à Participação Minoritária, o ideal seria que cada projeto fosse analisado em separado para depois “consolidar proporcionalmente independente do controle” e chegar ao lucro líquido do projeto para só depois separar a parcela atribuída para a empresa da parcela dos demais sócios nos empreendimentos. Porém, isso não é possível. Uma abordagem é estimar a participação minoritária típica, que, porém, costuma variar bastante ao longo do tempo. Um meio termo seria as empresas facilitarem e ou terem próximo de 100% do empreendimento ou não ter o controle do empreendimento (eliminando, assim as participações minoritárias), mas é óbvio que não podemos esperar que as empresas ajustem suas práticas para facilitar o trabalho dos analistas (muito embora, algumas empresas acabem atuando exatamente dessa maneira).

Eu poderia continuar citando outras contas afetadas pelos problemas já mencionados, mas para finalizar gostaria de acrescentar outro problema, a volatilidade. Isso afeta principalmente lançamentos e vendas, um trimestre com baixo volume de lançamentos podendo ser seguido por um trimestre com o dobro de lançamentos, por exemplo. O volume de vendas, que está relacionado com o de lançamentos, também pode variar de maneira pronunciada trimestre a trimestre. Essa volatilidade acaba não se transferindo totalmente para os resultados da empresa, na medida em que mesmo um trimestre com baixas vendas pode ainda ter números decentes (ou seja, que não apresentem queda na proporção da queda nas vendas) por conta da forma como a receita é reconhecida. Mesmo assim, é muito mais difícil trabalhar com números tão voláteis. E como não poderia faltar mais um “para piorar” nesse texto, para piorar o volume de lançamentos pode ser zero, ou até, em casos mais extremos, negativo (com cancelamento de projetos). A questão é: como modelar isso? Seria possível utilizar um modelo para estimar o volume de lançamentos de acordo com diversos parâmetros, mas talvez esse modelo não consiga prever lançamento zero, que se tornou uma prática comum entre as incorporadoras no atual estágio da economia brasileira.

Então, para resumir, empresas de construção civil são difíceis de analisar por conta do caráter multiperíodo de diversas contas, o problema de agregação e a volatilidade, fatores potencializados pela “ocultação” de valores que são contabilizados de maneira extremamente agregada como “Participação Societária”.


Fonte da imagem: Wikimedia Commons